A PEN América é uma organização sem fins lucrativos, fundada em 1922, na cidade de Nova York, cujo objetivo é aumentar a conscientização para a proteção da liberdade de expressão nos Estados Unidos e em todo o mundo por meio do avanço da literatura e dos direitos humanos. O nome PEN América foi concebido como uma sigla: Poetas, Ensaístas, Romancistas e posteriormente ampliado para Poetas, Dramaturgos, Editores, Ensaístas, Romancistas. A PEN America organiza anualmente programas e eventos sobre literatura e direitos humanos, incluindo o “PEN America Literary Awards”, conhecido, também, como o "Oscar dos Livros". Segundo a PEN America, nos últimos dois anos, o livro “O olho mais azul” (“The bluest eye”), uma tentativa de dramatizar a opressão que o preconceito racial pode causar na mais vulnerável das criaturas: uma menina negra, da escritora Toni Morrison (1931 – 2019), Nobel de Literatura de 1993, sofreu pelo menos 116 proibições em bibliotecas americanas. “O olho mais azul” (Companhia das Letras), é considerado um dos livros mais impactantes de Toni Morrison, conta a história de Pecola Breedlove, uma menina negra que sonha com uma beleza diferente da sua. Negligenciada pelos adultos e maltratada por outras crianças por conta da pele muito escura e do cabelo muito crespo, ela deseja mais do que tudo ter olhos azuis como os das mulheres brancas -- e a paz que isso lhe traria. Mas, quando a vida de Pecola começa a desmoronar, ela precisa aprender a encarar seu corpo de outra forma. Poderosa reflexão sobre raça, classe social e gênero. Hoje, 17 de novembro de 2024, na FOLHA Ilustrada, páginas B4 a B7, recomendo o artigo “Ó, dizei, podeis ler?” do jornalista Eduardo Moura. Os números de livros censurados e proibidos não só nos Estados Unidos, mas no Mundo, assusta. Artigo completíssimo, para guardar, refletir e gritar: Podeis ler! Sempre.
João Scortecci
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PEN AMÉRICA E O LIVRO “O OLHO MAIS AZUL” DE TONI MORRISON
FORTALEZA DE LUZ E POESIA
Fortaleza é luz. Iracema - a filha de Araquém - dorme suas águas aos olhos do mar. Velas e vento. Martin e Caubi partiram cedo com a jangada dos peixes, nos primeiros ventos da manhã. Eu, filho dos Tabajaras, espero o reencontro de Alencar, Rachel, Aderaldo e outros. Quero saber dos peixes, das lagostas, dos camarões, da água de coco e das tapiocas de mel. No farol do Mucuripe, os versos dos olhos do mar. Passado, presente e futuro. Minha terra é isso - e quase tudo - no coração das lembranças e do tempo veloz. Dia 24 de novembro de 1971, data especial na minha vida. Um anjo poeta - iluminado e danado de sonhos - apareceu-me e disse: escreve o seu livro e vai, sem volta, para São Paulo. Foi o que fiz. Naquele mesmo dia abri um caderno novo de brochura - Patave - e comecei, então, a escrever o poema sem-fim. São Paulo veio logo depois, no dia 17 de fevereiro de 1972, após as festas de carnaval, desembarquei no Terminal Rodoviário da Luz e aqui fiquei. E ficarei.
João Scortecci
SARAMAGO E A CEGUEIRA DA ARTE DE ESCREVER
Lendo a biografia de escritor português Saramago (José de Sousa Saramago, 1922 - 2010), Prêmio Nobel de Literatura (1998), autor do livro Ensaio sobre a Cegueira (1995) e outros, encontrei no seu endereço na Internet (josesaramago.org), algo, que até então, desconhecia, o significado da expressão fulano tem “habilitações literárias”: sabe ler, escrever e contar! Interessante. Sobre a obra “Ensaio sobre a Cegueira”, história da epidemia de cegueira branca numa cidade, declarou: "Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São mais de 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso." Saramago - planta herbácea, cujas folhas, em épocas de carência, serviam como alimento na cozinha dos pobres – sobrenome incluído ao “José de Sousa”, por própria iniciativa do funcionário do Registro Civil, de como a família era conhecida na aldeia, escreveu, sobre a arte de escrever: “Dificílimo ato é o de escrever, responsabilidade das maiores. (…) Basta pensar no extenuante trabalho que será dispor por ordem temporal os acontecimentos, primeiro este, depois aquele, ou, se tal mais convém às necessidades do efeito, o sucesso de hoje posto antes do episódio de ontem, e outras não menos arriscadas acrobacias (…)”. Conhecido por não gostar de pontos, parágrafos, travessões e capítulos, declarou: “Gostaria de não interromper nunca a minha escrita, nem com sinais de pontuação nem com capítulos, que tudo fosse simultâneo, o mesmo que ocorre com a realidade: o carro que passa, o fotógrafo que faz uma foto, o vento que mexe os galhos.” José de Sousa Saramago faleceu em 18 de junho de 2010, aos 87 anos de idade, em Tías, Província de Las Palmas, Canárias, Espanha. Através da escrita, tentamos dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso. Algo assim.
João Scortecci
O POETA RABEARIVELO E OS BOIS AZUIS
O poeta Jean-Joseph Rabearivelo (Jean-Casimir Rabe, 1901-1937), nasceu na República de Madagascar, país insular no Oceano Índico, maior ilha da África e a quarta maior do mundo, situada na costa sudeste da África. Quando nasceu, o país ainda se chamava República Malgaxe, uma colônia francesa, que se tornou independente no ano de 1960. Os malgaxes formam o grupo étnico de mais da metade da população da ilha, hoje estimada em 28 milhões de habitantes. Rabearivelo é considerado o primeiro poeta moderno da África e o maior de Madagascar. Publicou seus primeiros poemas ainda adolescente, em revistas literárias locais. “La coupe de cendres” (1924) é o seu livro de estreia na poesia. Publicou em inúmeras antologias de poesia em francês e malgaxe, bem como críticas literárias, peças teatrais, uma ópera, além de dois romances, publicados postumamente: “L'Interférence, suivi de Un Conte de la Nuit” (1988) e “Irène Ralimà sy Lala roa” (1988). Rabearivelo trabalhou na editora Imprimerie de L’Imerina, como revisor e editor. Passou a ser conhecido na Europa por meio de um artigo, em francês, sobre a poesia malgaxe, publicado pela revista austríaca missionária “Anthropos”. Nos versos do poema “O boi branco” do livro “Quase Sonhos” (1934) (tradução de Antonio Moura, Lumme Editor, 2004), assim se expressa: “Esta constelação em forma de cruz, é ela o Cruzeiro do Sul?/ Eu prefiro chamá-la Boi-branco, como os Árabes./ Ele vem de um parque que se estende às margens da noite/ e se enfurna entre duas Vias Lácteas./ O rio de luz não tem aplacado sua sede,/ e ei-lo que bebe avidamente do golfo das nebulosas./ Sendo um efebo cego nas regiões do dia,/ ele nada tem podido acariciar com seus cornos;/ mas, agora que as flores nascem nas pradarias da noite/ e que a lua brota de um salto como um touro,/ seus olhos recobram a visão, e ele parece mais forte que os bois azuis/ e os bois selvagens que dormem em nossos desertos”. Rabearivelo cometeu suicídio por envenenamento com cianeto. Na manhã do seu suicídio, escreveu um poema final e queimou os cinco primeiros volumes do seu diário pessoal, os “Calepins Bleus” ("Cadernos Azuis"), deixando apenas os últimos quatro volumes, aproximadamente 1.800 páginas, que documentam a sua vida a partir de 1933. Nas suas anotações finais no diário, registrou, ainda, detalhadamente, a experiência do seu suicídio. Tinha 36 anos de idade e, apesar das desilusões e amarguras em seu último ano de vida, parecia mais forte que os bois azuis do Cruzeiro do Sul.
João Scortecci
1964, A UBE E A GESTÃO DO JORNALISTA OLIVEIRA RIBEIRO NETO
O jornalista e romancista Afonso Schmidt (1890 – 1964), após eleito, tomou posse na presidência da UBE – União Brasileira de Escritores, no dia 18 de março de 1964, alguns dias antes do golpe militar de 1964. Na ocasião, seu vice, o professor e jornalista Luiz Geraldo Toledo Machado (1927 – 2010), estava em viagem no exterior e não pôde, formalmente, tomar posse, segundo os estatutos da entidade. No dia 31 de março – 13 dias depois da eleição – foi deflagrado o golpe militar de 1964. Três dias depois, no dia 3 de abril de 1964, Afonso Schmidt veio a falecer, deixando vaga a presidência da UBE. Uma assembleia extraordinária foi, então, convocada pelo Conselho Consultivo e Fiscal da entidade, formado pelos intelectuais: Mário Donato, Joaquim Pinto Nazário, Leôncio Basbaum, Solano Trindade, João de Souza Ferraz, Maria José de Moraes Pupo Nogueira, Fábio Rodrigues Mendes, Aristeu Bulhões e Benedito Geraldo de Carvalho. Nova eleição foi marcada, e, na ocasião, foram registradas três chapas, encabeçadas, respectivamente, pelos escritores: Jamil Almansur Haddad, Oliveira Ribeiro Neto e Mário Graciotti. Alguns dias antes da eleição, Haddad e Graciotti renunciaram, e o professor, promotor público, juiz e adido cultural do Itamaraty, Oliveira Ribeiro Netto (Pedro Antônio de Oliveira Ribeiro Netto, 1908 – 1989), foi indicado como presidente da UBE. Os primeiros anos da sua gestão foram marcados por conturbações na ordem jurídica do País, prisão de escritores e apreensão de livros. A entidade, nesse período, publicou diversos boletins, dirigidos pelo escritor e romancista Ibiapaba Martins (Ibiapaba de Oliveira Martins, 1917 – 1985) que, em artigos assinados, verberava as violências contra escritores presos, perseguidos e torturados. Somente no dia 20 de maio de 1965 a chapa encabeçada pelo jornalista Oliveira Ribeiro Neto tomou posse, de direito, tendo Lygia Fagundes Telles (1ª vice), Raimundo de Menezes (2º vice), Ibiapaba Martins (Secretário Geral), Roberto de Paula Leite e Hernâni Donato (Secretários), Walter José Faé, Paulo da Silveira Santos e Maíza Strang da Rocha (Tesoureiros). Foram eleitos como diretores: Herculano Pires, Leão Machado, Lília A. Pereira da Silva, Henrique L. Alves, Hélio Silveira, Pascoal Melantônio, João Freire de Oliveira, Clóvis Moura, Alexis Pomerantzeff e Gabriel Marques. O Conselho Consultivo e Fiscal foi formado pelos escritores: Cassiano Ricardo, Sérgio Milliet, João Accioly, Mário Donato, Mário Graciotti, Aristeu Bulhões, Joaquim Pinto Nazário, Domingos Carvalho da Silva, Tito Batini e Solano Trindade. Nesses mais de 50 anos de livros, assusto-me, sempre, quando lembro que conheci, convivi e publiquei pela Scortecci Editora muitos desses incríveis e imortais escritores. Não adianta dizer que eu era jovem e tive sorte: eu envelheci, também.
João Scortecci
IMPLICANDO COM AS PALAVRAS RUINS
Eu ando implicando - muito - com o significado de algumas palavras. Exemplo: Cretino - pessoa que apresenta uma deficiência ou um retardo no aprendizado, sendo considerado imbecil ou idiota. Acho o seu significado pejorativo, desagradável e depreciativo. Ruim de tudo! O jornalista, escritor, teatrólogo e cronista esportivo Nelson Rodrigues (1912 - 1980) ao dizer: “Paixão política é cretinizante” salvou a palavra dando a ela outro valor e significado. Não vou aqui listar o quanto o seu sentido é “da hora” e de uso diário e “oportuno” na imprensa, na política e na cretinice (ops!) do hoje. Fulano é cretinizante! Essa reunião está cretinizante! Que evento mais cretinizante! Que lugar cretinizante! Prometo que agora vou parar de “perseguir” as palavras feias de tudo. Juro que antes de entregá-las ao livro dos pecados vou primeiro “redescobri-las”, levá-las, antes, ao purgatório dos sentidos e depois, então, decidir: Céu ou Inferno? Versos expiatórios? Talvez. Cretinizantes!
João Scortecci
LINDOLF BELL, O POETA DA GERAÇÃO DAS CRIANÇAS TRAÍDAS
Conheci o poeta Bell (Lindolf Bell, 1938-1998) nos anos 1980. Dizia sempre: “Menor que o meu sonho não posso ser”. Quem nos apresentou foi o também poeta catarinense Péricles Prade (1942-2024), na época Presidente da UBE – União Brasileira de Escritores. Avisou-me: “Scortecci, hoje o Bell vai relançar o seu livro ‘As Annamárias’, no Spazio Pirandello. Vamos?” Fomos em bando: eu, Péricles, Caio Porfírio Carneiro, Lauro Vargas e outros diretores da entidade. O Pirandello ficava na Rua Augusta, n. 311, na época ponto de encontro de jornalistas, escritores e intelectuais. Foi lá que conheci Loyola Brandão, Moacir Amâncio, Caio Fernando Abreu e outros. Naquela noite – inesquecível, até hoje – de Catequese Poética, movimento de popularização da poesia que teve início na década de 1960, Bell declamou o “Poema das crianças traídas”: “Eu vim da geração das crianças traídas./ Eu vim de um montão de coisas destroçadas./ Eu tentei unir células e nervos, mas o rebanho morreu./ Eu fui à tarefa num tempo de drama./ Eu cerzi o tambor da ternura, quebrado.../ Eu sou a geração das crianças traídas./ Eu tenho várias psicoses que não me invalidam...” Aplausos. Durante alguns anos, vez por outra, trocávamos cartas datilografadas. Guardo-as no memorial da Scortecci Editora. Era seu desejo: "Há muitos anos tento um espaço descentralizador da cultura brasileira no Sul (em Blumenau, Santa Catarina) e gostaria de receber esta obra para revender em meu espaço cultural." Um detalhe, insignificante, talvez. Disse-lhe: “Bell, você precisa limpar os tipos da sua máquina de escrever!”. Ele, uma única vez, respondeu-me: “Farei isso!”. As letras “e” e “o” da sua máquina de escrever eram engodos, pontos sujos: borravam o papel. A última carta que recebi do poeta de Timbó, data de 11 de maio de 1991, e nela Bell, escreveu: “De muitas maneiras (e não tantas neste país), as pessoas resistem no ofício.” Pensei, quando li: “Não podemos ser menores que os nossos sonhos”. Bell – o poeta da geração das crianças traídas – morreu jovem, no dia 10 de dezembro de 1998, aos 60 anos de idade.
João Scortecci
HISTORINHAS DO CORAÇÃO DÓCIL E BOM
Gosto de “historinhas”. Quem não gosta? Algumas são deliciosas e desde criança fazem parte do meu coração de menino. Vovó Sarah era quem contava as melhores. Inesquecíveis! Foi ela que me contou a historinha do velho e sábio índio e os seus conflitos internos da alma: “Dentro de mim moram dois cachorros, um deles é cruel e mau, o outro é muito bom e dócil, eles estão sempre procurando briga um com o outro. Foi quando lhe perguntaram: “Qual dos dois ganharia a briga?” O velho índio parou, refletiu e respondeu: “Aquele que eu alimentar primeiro!” Hoje acordei cedo e logo tratei de alimentar o meu cachorro bom e dócil. Comeu e dormiu, em paz, com a cabeça voltada para o bem. O cachorro cruel e mau, reclamou. Dei-lhe, então, ração e água. E nada mais. Vovó Sarah dizia, sempre: o único animal cruel por natureza é o homem. Eles e as formigas! Formigas? Sim. Elas carregam e espalham doenças, vírus, bactérias e fungos! Filho, cuidado com as formigas! Fuja delas. Elas levam e trazem gripe, tuberculose, verminoses e até lepra, além de intoxicações alimentares, vômito e diarreia. Já idosa e sofrendo de demência, isso no final dos anos 1970, certo dia, depois de alimentar os cachorros, tirou os sapatos do pé, ajoelhou-se e começou a cutucar o chão da sala e os cantos da casa. Vovó, o que você está fazendo? Perguntei-lhe. Ela, então, olhou-me e respondeu: Estou matando formigas! “Qual dos dois ganharia a briga?” Quis saber. Ela sorriu e resfolegou: a crueldade.
João Scortecci
DENTADURA NO COPO E JOHNNIE WALKER CAWBOY
Eu o conheci - isso nos anos 1960 - como Zé Maria. Provavelmente José - primeiro nome - e um sobrenome, que desconheço, infelizmente. Seu apelido: Cabeção! Simples, amigo, humilde e trabalhador. Adorava uma prosa. Trabalhou com o meu pai Luiz durante alguns anos no Grupo J. Macedo - e depois - por conta própria - abriu um pequeno comércio, na região central da cidade de Fortaleza, de roupas masculinas, acessórios e gravatas. Pilotava uma lambreta italiana, vermelha e branca, e com ela fazia entregas pela cidade. Vez por outra ia visitar o meu Pai - lembrar os bons tempos - e beber uísque Johnnie Walker, que papai comprava no Porto do Mucuripe. “Zé vai uma lapada!” Era a deixa! Papai “judiava” do amigo. Adorava vê-lo desesperado, sofrendo, doido para beber. “Luiz, apenas uma lapada, pouco, para limpar o sangue!” Dizia, sempre. Mamãe Nilce gostava do cerimonial, das piadas e bebia junto. “Nilce, abre um vidro de espiga de milho em conserva pra comer de tira-gosto!”. Papai Luiz - com parcimônia - quebrava o lacre e colocava o litro de Johnnie Walker na frente dos olhos do Cabeção. Ele tremia e suspirava. "Luiz, mais uma e eu vou embora!”. "Outra, por favor!" ”Mais uma, para finalizar!”. “Que tal uma saideira?”. Bebiam até o litro chegar no osso. "Zé Maria, não faça desfeita. Termina!" Cabeção, então, bebia num gole gigante, os dois últimos dedos da garrafa de uísque Johnnie Walker. Papai Luiz, então, “arrastar” o Zé Maria, até a Rural e o levava para casa, bêbado, trançando as pernas. Sua mulher - Maria? Talvez - o aguardava no portão. Depois de alguns anos descobri que mamãe Nilce ligava pra ela e avisava: “O Zé Maria está aqui papeando com o Luiz!”. Era o sinal. A lambreta, vermelha e branca, dormia no terraço lá de casa, esperando o dono, voltar para pegá-la, de ressaca, no dia seguinte. No ano de 1974, Eu e meu irmão José, já morando em São Paulo, recebemos numa tarde de domingo, uma ligação do Cabeção. Surpresa! Contou que o seu negócio havia prosperado e que agora comprava mercadoria diretamente de um atacadista em São Paulo. Perguntou: “Posso dormir ai no apartamento de vocês alguns dias?”. E assim foi. Ia e voltava a cada quinze dias. Trazia malas grandes, vazias, uma dentro da outra, enchia de mercadoria e voltava, apressado, para Fortaleza. E num saco de supermercado, uma garrafa de uísque Old Eight. "É presente!" Dizia, sempre. Bebia, sozinho. Dormia na sala e roncava feito um Leão faminto. Um dia, Zé Maria, sumiu. Escafedeu-se! Deixou as malas na sala e no armarinho do banheiro, dentro de um copo com água, uma dentadura e uma escova de dente. Meu irmão José, quando viu aquilo, gritou: “Que nojeira!” Corri para ver o que tinha acontecido. Confesso: a cena era de filme de terror. Uma dentadura suja - ainda carnívora - afogada num copo e uma escova de dente, com cerdas sujas e desalinhadas. Lavamos o banheiro e passamos álcool no armarinho da pia. A “dentadura” ficou por lá, viva, sangrando, uma eternidade. Cabeção, alguns dias depois, reapareceu, cabisbaixo, envergonhado, talvez. Pegou as malas, sua dentadura, a escova de dente e em silêncio, partiu. Deixou no bar - de presente - um litro de Old Eight. Os tempos eram outros: bebíamos, na época, Campari, vodka Orloff, uísque Passport e vinho Almaden. Old Eight não. Zé Maria - o piloto da lambreta italiana - lapou-se, de vez. Lambretou-se!
João Scortecci
O MATEMÁTICO MALBA TAHAN E O TAMANHO DO BRASIL
“Tahan” em árabe significa “Moleiro”. “Malba”, nome de uma aldeia da Arábia Pétrea. O escritor, professor e matemático carioca Malba Tahan (Júlio César de Mello e Souza, 1895 - 1974), autor do livro “O Homem que calculava: aventuras de um singular calculista persa”, quando da escolha do seu nome literário. Criou este personagem por acreditar que um escritor brasileiro não chamaria atenção escrevendo contos árabes. Escreveu: “O árabe é homem que faz poesia a propósito de tudo. Suas atitudes sempre são romanescas. Não compreende a vida sem a poesia. Mas o pseudônimo não deveria ser nem masculino e nem feminino. Teria de ser sonoro. Teria de dar a necessária impressão de perfeita autenticidade.” Lendo sobre o tamanho do território brasileiro - cerca de 8,5 milhões de km² - no papel, porém, o território brasileiro é maior, muito maior. Quando se faz a soma da área de todos os imóveis rurais cadastrados no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o resultado chega a 9,1 milhões de km². O Brasil tem 600 mil km² a mais, o equivalente a dois estados de São Paulo. Não sabia! No Brasil paga-se “indevidamente” Imposto de Propriedade Territorial Rural (ITR) por um Brasil que não existe, o equivalente ao tamanho de 1/3 da Europa. Malba Tahan, se convocado fosse, diria, provavelmente, sua célebre frase sobre a medida exata das coisas: “O professor de matemática em geral é um sádico. Ele sente prazer em complicar tudo.”
João Scortecci
IRMÃO LUIZ GONZAGA E O SINAL DO DESTINO
O tempo é assim: leva e traz! Quando o coração “coça”, a vida responde com o que ela tem de melhor: lembranças dos tempos vividos! Guardo-as nas nuvens! Quando a vida “provoca” vou lá e trago de volta, apenas o que interessa. Simples assim. Segredos? Talvez. A vida ensina, sempre: não adianta carregar - a todo instante - o peso do saco cheio! Aqui confesso: preciso do “vazio” para compartilhar - quando o coração perguntar - os meus idos e vividos. Assim - tento, inutilmente - gerir os pecados das minhas almas. Hoje o Morgan Moura - amigo escoteiro dos anos 1960, lá no Ceará - arrebentou o meu luto. Morgan postou na sua página no Facebook uma foto de sua turma de classe do eterno e mágico Colégio Cearense. Não sei o ano. Na foto, seu rosto, circulado, identificando-o. Interessante. Surpresa - que leva e traz - foi encontrar na foto, do seu lado esquerdo, de óculos, o meu irmão Luiz Gonzaga, que faleceu em 2022, da Covid-19, aos 72 anos de idade. Que lembrança maravilhosa! Dor e alívio. Fui até às nuvens e lá resgatei - detalhes - das nossas muitas histórias, juntos. Luiz - antes de ficar careca, como eu - tinha na cabeleira, do lado direito, um sinal, uma marca de nascença, um sinal, uma mecha branca de cabelos. O tempo é assim: leva e traz e o coração “coça” com o sangue das suas linhas. Continuo olhando a mecha. Ela e a vida, velozes. Até quando? Não sei. Simples assim.
João Scortecci
PAPELADA DOS INFERNOS E OS INÉDITOS DO AMOR BANDIDO
Já editor de livros, num almoço de domingo, isso no ano de 1999, quase na virada do milênio, mamãe Nilce – depois de beber uma garrafa de Almaden Cabernet Sauvignon – confessou-nos, alegremente: Vocês sabiam que o Pai de vocês já escreveu um romance? Silêncio. Papai – surpreso – com a deduração de mamãe Nilce, emudeceu-se. É verdade? Quis saber. Papai enrolou-se todo e sem saída, confessou: É verdade. Já cometi um romance! Risos. Onde está o livro? Insisti. Perdeu-se. Durante anos duvidei do simples desaparecimento da obra. Quando mamãe Nilce morreu, em 2003 e papai, já demente, vasculhamos o apartamento, mas o livro, infelizmente, não foi encontrado. Lembro-me que, um dia, perguntei-lhe: Pai, o senhor jogou o livro fora? Ele – distante e esquecido - respondeu-nos: O livro simplesmente sumiu! Era sobre o quê? Perguntei. Mamãe Nilce, certa vez, deixou escapar um fio de luz: Era uma história de amor de um estudante e uma jovem de nome Conceição! Deve ter sido verdade, penso. Lembro-me que, quando, Cauby Peixoto (1931 - 2024), cantarolava no rádio a música "Conceição", Papai Luiz tremia feito vara verde e mamãe Nilce, soltava fumaça pelo nariz. Em 50 anos escrevendo, editando e imprimindo livros conheço muitas histórias de originais perdidos, destruídos, queimados, jogados fora. Muitas vezes pelos próprios autores, mas, quase sempre por alguém da família. As razões são muitas, pertinentes ou não, acontece, e parte da vida e da história daquela pessoa, desaparece de tudo. Uma vez - já editor de livros - acompanhei, de perto, uma desventura cruel. Um professor viúvo, respeitadíssimo no meio literário, com vários livros publicados e outros, ainda, inéditos, faleceu, de AVC - Acidente vascular cerebral, aos 72 anos de idade. Uma de suas filhas - a mais velha - ligou-me e avisou de sua morte. Foi um susto. Gostava dele. No meio da conversa argumentou: Jogamos tudo fora, uma papelada dos infernos! A escrivaninha e a poltrona de couro, um sobrinho levou. Ficou a máquina de escrever: vocês querem? Perguntou. Continuou falando: Guardamos as roupas. Ternos de linho, sapatos italianos, gravatas de seda, abotoaduras e perfumes. O velho, você sabe, depois que enviuvou, andava nos trinques! Vocês o quê? Perguntei, temeroso e preocupado, desde então, com a sorte dos originais e da papelada do Professor. Guardamos os ternos, as gravatas, as abotoaduras e os perfumes. Repetiu. E os livros da biblioteca de literatura? E os originais inéditos? Doamos e jogamos tudo fora, no lixo. Resfolegou. Perguntei, então, assustado: O que faço com os exemplares dos livros publicados que estão no estoque da editora? Pode jogar tudo fora, não queremos nada! Foi quando, em 2001, criei o Portal Amigos do Livro e depois, mais recentemente, a ONG Livros para Todos, projeto voluntário, de formação e ampliação do acervo de bibliotecas públicas e comunitárias. Os exemplares dos livros do Professor, os que estavam no estoque da Scortecci, foram, então, entregues para o Portal Amigos do Livro e depois, doados, para bibliotecas comunitárias. A máquina de escrever ficou por lá. Não tive coragem de retirá-la. Fui covarde! Sempre que presencio história igual ou parecida, lembro do romance "Conceição" que o meu pai Luiz - jovem e apaixonado - escreveu e perdeu-se. Hoje, só eu sei, escuto no rádio a música "Conceição" e também, notícias da morte do eterno Cauby Peixoto. É verdade? Foi então que lá em cima apareceu, alguém que lhe disse a sorrir, Conceição, só eu sei.
João Scortecci
GERTRUDE STEIN, WOODY ALLEN, SALVADOR DALÍ E A PARIS DE 1920
Conheci a escritora, poeta e ativista do movimento feminista estadunidense Gertrude Stein (1874 - 1946), depois de assistir ao belíssimo filme "Meia-Noite em Paris" (“Midnight in Paris”), de 2011, estrelado por Owen Wilson, Marion Cotillard e Rachel McAdams, escrito e dirigido pelo cineasta, ator e comediante estadunidense Woody Allen. Gertrude Stein nasceu na cidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos. Caçula de cinco filhos de um casal de judeus alemães, de classe média alta, Daniel e Amélia Stein. Aos 3 anos de idade sua família mudou-se para Viena, na Áustria e depois para Paris, França. Em 1879 a família retornou aos EUA e se estabeleceu em Baltimore e depois em Oakland, na Califórnia. Gertrude estudou psicologia no Radcliffe College, faculdade de artes liberais para mulheres e medicina na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, Maryland, não chegando a concluir o curso, optando mudar-se para Paris, onde seu irmão mais velho, Leo, morava e colecionava pinturas de artistas famosos, como Paul Cézanne, Jean Renoir, Édouard Manet, Paul Gauguin e obras de pintores, até então desconhecidos, como Pablo Picasso, Georges Braque, Juan Gris e Henri Matisse. Gertrude Stein escreveu dezenas de livros e poemas. Seu romance mais famoso “A autobiografia de Alice B. Toklas” é o que menos representa sua prosa experimental. Um artigo publicado no New York Times em 1968 descreveu o apartamento dela na Rue de Fleurus, 27, na margem esquerda do Sena, como o "primeiro museu de arte moderna". Stein costumava organizar salões noturnos aos sábados, que atraíam não apenas artistas europeus de vanguarda, cujas obras estavam penduradas do chão ao teto de seu apartamento, mas também escritores americanos. Stein os chamava de "geração perdida". Entre os convidados literários estavam Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald e Ezra Pound. "Todos traziam acompanhantes, vinham a qualquer hora e isso começou a ser um incômodo. Assim começavam as noites de sábado", conta Gertrude Stein em "A autobiografia de Alice B. Toklas", sobre sua parceira de vida. O filme "Meia-Noite em Paris" conta a história de um escritor e roteirista americano que, enquanto caminha sozinho pela cidade, no badalar da meia-noite, volta no tempo, na Paris do ano de 1920, nos encontros da Rue de Fleurus, 27, de Gertrude Stein. Aqui confesso: inveja do escritor Gil Pender (papel vivido pelo ator Owen Wilson), quando - magicamente - encontra Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Salvador Dalí e Outros. Meu pai Luiz Gonzaga, contava que numa viagens à Espanha, assistindo a uma tourada em Madri, sentou-se do lado de um sujeito estranho, com um imenso bigode colado com as pontas para o céu. Pensou consigo mesmo: "Eu conheço esse sujeito!". Carregava, na época, uma filmadora de 8 mm. Dizia: "Até pensei em filmar o homem do bigode esquisito, mas acabei ficando com o touro e o público da arena que gritava olé, olé". "No hotel, já deitado, pulei da cama e gritei: Salvador Dalí". Nunca se perdoou por isso. Brincávamos, sempre: "Papai passa o filme do touro" e ele respondia, emputecido: "Não!".
João Scortecci
CINE MARABÁ, MARIA SCHNEIDER E TALHARIM À CAVALO
O cine Marabá fica na República, na Av. Ipiranga, 757, quase esquina da Av. São João. Foi inaugurado em maio de 1944 e lá está, até hoje. Gigante e imponente, com capacidade para 1.022 pessoas. Nos anos 1972 até 1974, frequentava a Praça da República e Região. Largo do Arouche, 7 de Abril e 24 de Maio, eram as ruas preferidas. Passava horas nas livrarias do centro, em especial na Livraria Brasiliense, da Barão de Itapetininga. Aos domingos o programa era único: Almoçar talharim à cavalo no Giovanni, da Rua Timbiras, 607 e depois, comprar selos, na Feira Hippie da República. Foi na Av. São João com a Av. Ipiranga, que, apaixonei-me, pela atriz francesa Maria Schneider (1952 – 2011). Era uma sexta-feira e no Cine Marabá estava passando o filme "Último Tango em Paris". Conhecia o astro Marlon Brando (1924 – 2004), dos filmes: O Selvagem, Viva Zapata e Outros. Era o galã da época! Mas, a Maria Schneider, não. A cena da manteiga – confesso – era o melhor dos pecados. Quero ver! Eu tinha na época 16 anos de idade e o filme era proibido para menores de 18 anos. Tinha uma identidade falsa - comum entre os adolescentes da época - e uma certeza: não iriam me barrar na entrada com os meus 1,89m de altura. O plano era simples: fazer a catraca girar, com tranquilidade. Foi o que fiz. Alguns metros depois, já no salão principal do Marabá, alguém abordou-me: "Senhor!" Gelei. Juizado de Menores? A voz, então, disse-me: “Senhor, não pode entrar sem terno e gravata!" Terno? Não sabia. Nem terno eu tinha. Vendo o meu "atrapalhamento" o homem apontou para um cabideiro, apinhado de casacos e gravatas, no canto, a esquerda do salão. Disse-me: “Escolhe lá terno e gravata e devolve, depois, na saída!”. Foi o que fiz. Provei. Nenhum casaco do meu tamanho. Todos pequenos, sujos e fedorentos. As gravatas penduradas, já com nó dado. Sorte a minha. Até então, não sabia dar nó de gravata. Papai Luiz - antes de deixar o Ceará -, bem que tentou me ensinar, sem sucesso. Entrei e sentei, no meio, na primeira fileira. Não podia perder Maria Schneider. Ela me aguardava. Assisti duas seções seguidas. Assistir filmes proibidos no Cine Marabá, passou, desde então, programa das sextas-feiras, isso, depois, do talharim na manteiga, à cavalo, no Restaurante Giovanni. Foi também no Cine Marabá, que, enamorei, a belíssima Emmanuelle (Sylvia Kristel, 1952 - 2012), ano da graça de 1974, ano que completei 18 anos de idade, tirei carteira de motorista e joguei no tempo, todas as minhas identidades falsas.
João Scortecci
VÃO-SE OS ANÉIS, FICAM OS DEDOS
Minha mãe Nilce era médium. Lutou, durante alguns anos, contra o dom, depois, já morando em São Paulo, assumiu de vez. Deixou num diário, num livro de orações e em três livros de poesias, suas experiências mediúnicas. Nos anos 1960, de volta ao Ceará, depois de quase três anos morando em Dois Córregos, interior de São Paulo, passou a frequentar, quase que diariamente, a Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, região central de Fortaleza, na Avenida Duque de Caxias, 235. Morávamos na Av. D. Manoel, 1086, quase esquina com a Av. Duque de Caxias, três quarteirões de distância da Igreja. Um dia, Mamãe Nilce - visivelmente aborrecida e triste - juntou seus três filhos homens e disse-nos: “Não vou mais rezar na igreja!”. De hoje em diante cada um de vocês segue espiritualmente o seu caminho. E assim foi. Até hoje não sei o que aconteceu. Deve ter sido algo grave. Desconfio que Nilce - jovem e bonita - tenha sido assediada pelo pároco ou alguém da igreja. A vida é “Desleal e desumana”, palavras do meu pai Luiz Gonzaga. Justificava-se, com propriedade: “Não adianta andar com um canivete no bolso. O inimigo sempre carrega consigo um imenso facão!”. Risos. Lendo o livro “1942” do João Barone, rebelde baterista da banda “Os Paralamas do Sucesso” soube da história do seu pai “João Silva”, herói de guerra, pracinha que lutou na Itália, durante a II Guerra Mundial. Meu pai Luiz Gonzaga foi soldado do Regimento Sampaio, do 1º Batalhão de Infantaria Mecanizada. Em 1945, embarcou na cidade do Rio de Janeiro, num navio americano, com destino à Itália, mas o navio - felizmente - acabou não zarpando. A guerra havia acabado! Minha avó paterna Sarah do Carmo Paula - da promessa feita pela vida do seu filho mais velho – foi, então, resgatar junto ao pároco da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, o anel de brilhante, depositado, como garantia, pela promessa de milagre. O padre desconversou e não o devolveu. Disse: "Sarah, o milagre aconteceu!" Dos mais de 25 mil soldados brasileiros que lutaram na II Guerra Mundial, 377 eram cearenses. O padre milagreiro, alguns dias depois, sumir da paróquia. Escafedeu-se! “Vão-se os anéis, ficam os dedos”.
João Scortecci
CAMPO DE CONCENTRAÇÃO NO CEARÁ E A SECA DE 1932
Senador Pompeu, município do interior do Ceará, entre 1915 e 1932, guarda na sua história o episódio emblemático e trágico da construção de um campo de concentração para aprisionar os “flagelados da seca”. O objetivo era único: evitar que os milhares de famintos chegassem a Fortaleza, capital do estado. O campo de concentração de Patu, em Senador Pompeu, na seca de 1918, contabilizou perto de 20 mil retirantes. O Ceará teve oito campos de concentração, sendo sete deles construídos na seca de 1932, a mais terrível de todas. Um levantamento feito pela Universidade Regional do Cariri apontou um total de 73 mil prisioneiros. Um terço da população, na época, morreu de fome e doenças. Meu Pai Luiz Gonzaga, em 1932, tinha 9 anos de idade. Meu avô Batista, o Batista da Light, superintendente da Companhia Light no Nordeste, contava-lhe, tudo, detalhadamente, sobre a seca. Papai Luiz sofria de Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC). O medo - incontrolável - de ficar sem água o perseguiu a vida inteira. Lavava as mãos, sempre, depois que estendia a mão e cumprimentava uma pessoa. Em 1970, com medo de uma seca igual a de 1932, construiu no quintal de casa, uma imensa cisterna. Cobriu-a com árvores de sombra, plantas exóticas, bancos e uma pista de dança, com luz negra, churrasqueira e uma pequena copa. Registro duas histórias que “validam” a grande obra faraônica. Hospedou um “gorila” que fugiu de um pequeno zoológico próximo de casa – do Parque Cidade da Criança – que destelhou parte da casa. O gorila foi capturado pelos bombeiros, isso depois de morder o jardineiro e dedilhar, sarcasticamente, as samambaias do jardim. E, em 2005, no episódio do assalto ao Banco Central de Fortaleza, quando ladrões, na escavação do túnel de acesso ao subsolo do banco, deram de cara com a cisterna do engenheiro Luiz Gonzaga. Dizem, não sei se é verdade, que os ladrões chegaram a abrir um buraco na cisterna, que alagou o túnel, atrasando, por alguns dias, o roubo. Em 2015, 10 anos depois, já morando em São Paulo desde 1972, revisitei o passado. As casas, que formavam a Vila Santa Teresinha, da Família Paula, haviam sido demolidas. No local, encontrei um imenso estacionamento de apoio ao Branco Central. Conversei com o responsável pelo estacionamento que, com uma mangueira de jato, lavava o chão do estacionamento. Jogando água fora? Brinquei. “Aqui não falta água nunca!” Foi o que ele me disse. Então, detalhadamente, contei-lhe tudo sobre a cisterna e o tamanho dela. Surpreso, levou-me até a casa das bombas de puxar água da cisterna, perdida, desde então, no meio do estacionamento. Surpresa maior foi encontrar, funcionando a todo vapor, as bombas compradas na J. G. Vieira, do empresário José Guilherme Vieira, amigo da família. Não conheço Senador Pompeu, cidade localizada no centro do estado do Ceará, distante 273 km da Capital, com uma população de aproximadamente 25 mil habitantes. Desconfio que nunca visitarei Senador Pompeu e nem as ruínas do campo de concentração de Patu, que, significa, ironicamente, pequeno cesto para transportar comida, local onde morreram mais de 25 mil cearenses, irmãos de água, dor, fome e sangue.
João Scortecci
LIVRO MOLHADO E O POETA DESCONHECIDO
Um livro no banco da praça. Vi de longe. Molhado, pela chuva de hoje. Li o título e o nome do autor. Desconhecido, ainda. Livro de poesias, capa com desenho de um pássaro preto, ferido, perdido no meio de uma estrada. Cutuquei-o com os olhos e depois, o abri, com a ponta de um galho de árvore. Medo de feri-lo, de vez. Página 31, Poema: Asas da dor: “Dói o abandono qualquer. Dói. No silêncio da praça, não há vento e nem asas no tempo. Nada volta! O voo das águas da manhã afogou-me de lama e morte. E Eu, então, parti.” Guardei-o num saco plástico e o trouxe comigo. Coloquei-o para secar na janela do quarto. Anotei num pedaço de papel o nome do poeta e o seu endereço eletrônico, impresso no cólofon da obra. Reeditá-lo, talvez. Dia de sorte: chuva da manhã, banco de praça, livro molhado e um poema. E Eu, então, parti.
João Scortecci
A ERA DAS INCERTEZAS E O INCERTO
No dicionário, “incerteza” significa: estado ou caráter do que é incerto. Olhando o cenário global sob a perspectiva do hoje, estamos vivendo a plenitude de um estado de incertezas. Percebe-se nitidamente o caos e o colapso do planeta e, talvez, da própria humanidade. Vivemos tempos difíceis: guerras, tragédias e ignorância. Para muitos, chegamos ao fim de nós mesmos! “Incerteza” significa, ainda: caráter do que é incerto; hesitação, indecisão, imprecisão. Fico, então, com essas três proposições da dúvida. É sobre elas – temporais e perigosas – que, como Presidente da Regional São Paulo, escrevo o editorial do último número de 2024 da Revista Abigraf. A falta de certeza, para muitos é assustadora. Sufoca, mata. E pode travar e corroer um setor, uma atividade econômica, um país, uma nação, a ideia de um planeta azul justo e fraterno. No último editorial “O elo da criação na indústria gráfica”, escrevi: “A robotização jamais substituirá o elo da criação”. Um alerta sobre o fenômeno da chegada da Inteligência Artificial, que veio para ficar e gerou, no universo criativo, pânico e medo, máquinas dominando o mundo, desemprego, falências, escravidão da humanidade etc. Depois do susto ou de uma tragédia – tem sido assim, quase sempre – nós, os humanos, solidários e frágeis, renascemos das próprias cinzas e reconstruímos, de modo igual ou diferente: a vida como ela é. Sobre as incertezas, talvez: hesitação pela melhor escolha; indecisão sobre qual desafio abraçar e seguir em frente; imprecisão por medição, valor, trabalho e esperança. Reflexões, nada mais. Desconfio da exatidão das palavras. Elas – é o que dizem os poetas – quando fora do contexto, da razão e da emoção, são armadilhas perigosas. Fênix – a que renasce das próprias cinzas – é imortal na história, na nossa história, enquanto dure. Assim será. Acredito na brevidade do caos, do colapso e da morte.
João Scortecci
A BOLA DE ESCREVER DE MALLING-HANSEN
Gosto de máquinas de escrever. Coleciono algumas. Gosto do Barulho das teclas no papel e da simplicidade funcional do ato de imprimir: basta teclar! A minha primeira máquina de escrever foi uma portátil Hermes Baby, vermelha, novinha em folha. Tive outras: Remington, Olivetti, Hermes, IBM, Facit e Olympia. Hoje, guardo no memorial da Scortecci uma Olivetti – que tem história - e uma Hermes Baby, branca, que ganhei de presente. O dinamarquês Malling-Hansen (Hans Rasmus Johan Malling-Hansen, 1835 - 1890), diretor do instituto dinamarquês para surdos e mudos em Copenhague, é famoso por inventar a primeira máquina de escrever produzida comercialmente (180 máquinas, aproximadamente): a incrível Bola de Escrita Hansen (“Hansen Writing Ball”). A máquina foi inventada em 1865, patenteada e colocada em produção em 1870. Por sua invenção, Malling-Hansen recebeu vários prêmios. A Hansen já apresentava todos os refinamentos das máquinas de escrever dos anos 40-50: barra de espaço, retorno automático de carro, espaçamento entre linhas, índice para parágrafos ou linhas recuadas, campainha para sinalizar o fim da linha, reversão de fita e - por último, mas não menos importante - escrita visível ao elevar o mecanismo de digitação. Aqui com as minhas teclas poéticas: desconheço computador que toque campainha para sinalizar o fim da linha e desperte no coração o desejo de teclar, teclar e teclar, os versos imortais do poema sem-fim, enquanto dure! Já disse: gosto do barulho das teclas no branco do papel e da simplicidade funcional do ato de imprimir: basta teclar!
João Scortecci
BATISMO DE URINA E O SANDUICHE DE MORTADELA
Sou torcedor do Palmeiras desde 1972, quando mudei-me para São Paulo, Capital. Sou, também, torcedor do Fortaleza Esporte Clube e do Botafogo de Futebol e Regatas, times da infância dos anos 1960. Até então - quando criança - admirava o Santos, de Pelé e o Botafogo, de Garrincha. Tenho - no armário - camisas do Fortaleza. As mais antigas, infelizmente, não cabem mais. Acontece! Meu time de botão - guardado com carinho - chama-se Botafogo. Não tenho e nunca tive camisas do Botafogo. Não sei a razão. Tornei-me torcedor do Fortaleza Esporte Clube, o Leão do Pici, depois que os irmãos da família Holanda Sampaio: Alexandre, Guilherme, Raul e Paulinho, convidaram-me, então, para assisti, pela primeira vez, um jogo de futebol no Estádio Presidente Vargas, conhecido como PV, o clássico Fortaleza X Ceará, pelo Campeonato Cearense. Alexandre, Raul e Paulinho, torcedores do Ceará Sporting Clube e Guilherme, torcedor do Fortaleza. Optei em fazer companhia ao Guilherme - para não deixá-lo sozinho - algo assim. A torcida do Fortaleza, na época, ficava do lado oposto a entrada principal do estádio, atrás de um dos gols. Lembro-me que jurei: Viro torcedor do time que ganhar! Combinado? E assim foi. Naquele dia o Fortaleza goleou o Ceará por 4 X 0, fora o olé. Depois do jogo, na saída do estádio, Guilherme, disse-me: “Pronto para correr?”. Sim. Respondi. Guilherme colocou as sandálias havaianas nos dedos das mãos e correu. Fiz o mesmo. Lembro-me do sol - pegando fogo na cabeça - e da chuva amarela caindo do céu. Casamento de viúva? Pensei. Não. “Corre que é mijo!”. Gritou. “Fecha a boca e olha para o chão!” Foi o que fiz. Na época - não sei hoje - a saída da torcida do Fortaleza passava literalmente embaixo da arquibancada da torcida do Ceará. Ficamos ensopados de mijo! Já fora do estádio, tirei a camisa. Aproveitei, então, e comprei uma camisa do Fortaleza. Estava, então, batizado. Depois comemos sanduiche de mortadela e zoamos a turma. Daquele dia de sol e infância ficou: gols, mortadela e urina!
João Scortecci