Até tu, Stanford? Fofoca é fofoca. No que consiste: especular a vida alheia! Hoje fazem pesquisa de tudo. Algumas são interessantes, hilárias; outras, não. Vão direto para o lixo. Essa veio da Universidade de Stanford e eu – intrigado – dei atenção e algum crédito. A pesquisa, publicada na “National Academy of Sciences”, afirma que os fofoqueiros – aqueles que fazem fofoca, que se intrometem em assuntos alheios – têm uma significativa “vantagem evolutiva”, algo assim. Vantagem evolutiva? Continuando: os pesquisadores observaram que as pessoas cooperam quando um fofoqueiro conhecido e respeitado está trabalhando, compartilhando informações valiosas. Fofoqueiro top! Para os fofoqueiros, receber a cooperação de outra pessoa pode ser uma recompensa por si só. A pesquisa da Universidade de Stanford conclui que os fofoqueiros, aqueles que trocam informações pessoais sobre terceiros ausentes, têm vantagens evolutivas sobre os seus pares. O estudo utilizou um modelo evolutivo da teoria dos jogos, que imita a tomada de decisão humana, para observar como seus agentes, ou sujeitos de estudo virtuais, interagiam entre si e alteravam suas estratégias para receber recompensas. Na prática: jogar, blefar e fofocar! Socialmente, as pessoas fofoqueiras são descritas com uma conotação negativa; e essa descrição é baseada em vários motivos. Em primeiro lugar, a fofoca pode ser prejudicial às relações e vínculos pessoais, pois, dependendo da intenção do mensageiro, pode semear desconfiança e gerar conflitos desnecessários. Outros se aproveitam para distorcer ou exagerar informações sobre as quais têm poder, levando a mal-entendidos e preconceitos injustos. Em última análise, há quem recorra a esse ato para desviar a atenção das suas próprias ações ou problemas. Aqui vai uma dica valiosa para quem pretende escrever o Guia do Fofoqueiro: “Seja, sempre, o último a ir embora!” Diz a pesquisa, ainda: “A fofoca deveria ser tratada com muito mais respeito, já que é “o que torna a sociedade humana como sabemos que é possível”. E mais: “A fofoca tem a capacidade de unir grandes grupos de pessoas e fomentar a cooperação...”. A fofoca, que requer tempo e energia, evoluiu como uma estratégia adaptativa. Dessa forma, graças à sua capacidade de influenciar o comportamento dos outros e incentivar a cooperação: “os fofoqueiros têm uma vantagem evolutiva que perpetua o ciclo da fofoca e presta um serviço útil aos ouvintes”, destaca o estudo. Li e reli a nota da Universidade de Stanford. Resumo: vantagem – benefício ou privilégio que coloca alguém ou algo em uma posição mais favorável; evolutiva – tudo que se transforma, desenvolve-se ou se aperfeiçoa ao longo do tempo. Na prática: jogar, blefar e fofocar!
João Scortecci
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FOFOCA E AS VANTAGENS EVOLUTIVAS DA NATUREZA HUMANA
SHOLES, O FACILITADOR DE CARACTERES
O inventor norte-americano Christopher Latham Sholes (1819 – 1890) foi um “arranjador” de soluções. Hoje, talvez, fosse um “facilitador”, algo assim. Foi o inventor e o desenvolvedor do layout de teclado QWERTY, usado nas máquinas de escrever, nos celulares e nos teclados dos computadores. A história começou com tentativas de separar as letras mais usadas juntas, evitando, assim, que travassem. Sholes, no layout do teclado, definiu – desconheço a razão – que as seis primeiras letras da linha superior do teclado fossem: Q-W-E-R-T-Y. No Brasil, o padrão da ABNT é baseado no layout QWERTY, com algumas adaptações para o português, com a inclusão dos acentos. O layout do QWERTY, de Sholes, foi projetado, inicialmente, para a conveniência dos operadores de telégrafo e o uso do código Morse. Foi a empresa Remington que popularizou o QWERTY com sua máquina de escrever, ao introduzir no teclado, em 1878, o “Shift” para maiúsculas ou minúsculas, tornando-o padrão mundial. A primeira máquina de escrever comercial foi a Sholes & Glidden da Remington, do ano de 1867. Uma das diferenças entre o layout QWERTY original e a versão atual é a ausência da tecla: “!” / “1”. Em vez de digitar o numeral 1, os digitadores usavam a letra minúscula “l”. Para digitar um ponto de exclamação, usavam um ponto (.), pressionavam a tecla Backspace (Retrocesso) e, em seguida, digitavam um apóstrofo (’) acima dele. No meu teclado Multi, fabricado na China, a tecla de “Retrocesso” aparece apenas como uma seta apontando para a esquerda, acima do “Enter”. Outras teclas adicionadas em versões posteriores foram as teclas “=” e “+”. Esses símbolos eram usados com pouca frequência, pois geralmente se assumia que as notações matemáticas eram feitas em máquinas de calcular. Se os digitadores quisessem digitar um sinal de mais (+), digitavam um hífen (-), pressionavam a tecla Backspace (Retrocesso) e, em seguida, digitavam dois pontos (:). Quando queriam digitar um sinal de igual (-), digitavam um hífen (-), pressionavam a tecla Backspace (Retrocesso) e, em seguida, digitavam um sublinhado (_). Agora a novidade que eu até então desconhecia: os teclados QWERTY foram desenvolvidos como uma forma de diminuir a velocidade de digitação. As pessoas – lá nos primórdios das máquinas de escrever – digitavam tão rapidamente que, com frequência, travavam as teclas. Assim, o novo teclado evitava que o digitador tivesse que soltá-las com o uso do dedo indicador. No meu caso, confesso, as teclas travavam, não pela velocidade da minha nobre digitação, mas por ter os dedos grandes e ser ruim de pontaria. Ainda aprendendo: mais de 50% das teclas são pressionadas na linha superior do teclado e cerca de 30% na linha inferior, comumente chamada de “linha base”. Aprendi muito. Ficou apenas uma dúvida nos meus miolos: por que Christopher Latham Sholes – o facilitador – escolheu colocar primeiro, na linha superior do teclado as letras: Q - W - E - R - T - Y. Algum código secreto? Ou, talvez, desprezo poético pelo “ípsilon”, letra inútil, desajustada, incapaz de cometer um poema qualquer.
João Scortecci
PÃO FRESCO, CERVEJA E O COMEDOR DE SUJEIRA
“O que você faz?” Perguntei por perguntar. Puxando conversa fiada, esperando a fila andar, de vez, na casa lotérica, véspera de prêmio da Mega-Sena, acumulada. Jogo por jogar: sei que quem vai ganhar é um sortudo de longe, de alguma cidade pequena, do cafundó do Judas. “Eu sou um devorador de pecados!”. Foi o que escutei da boca do homem, de uns quarenta e poucos anos, magro, chapéu de palha, camisa suja, puída e míope. Sujeito estranho. Repetiu: “Eu sou um comedor de sujeira, um pacificador de almas!” Apresentou-se. A fila havia travado no guichê, por causa de um jogo “marcado” errado ou algo assim. Deixei a pressa de lado e dei ouvidos ao interessante servidor espiritual. Tagarelou, então: “Faço serviço de limpeza espiritual. Uso pão fresco e cerveja, seguindo a tradição escocesa. Meu trabalho é sugar da alma do morto todos os seus pecados, para que ele siga em paz e encontre o caminho da Luz.”. E funciona? Perguntei. “Nunca houve reclamação!” Respondeu-me, com segurança. “A coisa funciona assim: a família paga o serviço e eu cuido do tudo.” E é caro o serviço? Quis saber. “Um salário mínimo e mais um extra, dependendo da quantidade de pecados do morto." Justificou. "Dou NF e facilito o pagamento no cartão de crédito, em até três vezes, sem juros.". “Você é um pecador?”. Perguntou-me, olhando - direto - no fundo dos meus olhos. “Sou um capeta!”. Respondi. Ele não riu. Continuou me encarando. A fila na lotérica andou - chegou a minha vez - e eu, então, fiz o jogo de sempre, de 7 dezenas. Os “Devoradores de pecados” eram comuns na Inglaterra, Escócia e País de Gales, no século XVII e até início do século XX. O trabalho era simples: absorver - sugar - os pecados do morto e livrá-lo do inferno. O ritual era gastronômico e simples: Primeiro "comer pão e beber cerveja” depositados no peito do morto e, depois, durante o sepultamento, fazer um breve discurso, tomando para si os pecados do morto, com uma reza profana: “Eu dou servidão e descanso agora a ti, querido homem. E para a tua paz eu comprometo minha própria alma!”. Profetizava. Na mitologia asteca, a deusa Tlazolteotl – deusa da luxúria e dos amores ilícitos, senhora do sexo, da carnalidade e das transgressões morais – era considerada uma “purificadora” que perdoava e eliminava o pecado alheio. Ela tinha uma função “redentora” nas práticas religiosas da civilização da Mesoamérica, durante a evangelização dos espanhóis no Novo Mundo. No final da vida de um indivíduo, ela o autorizava a confessar seus pecados e, segundo a lenda, ela limpava sua alma, comendo a sua sujeira. Voltei-me, então, ao comedor de sujeira que me aguardava - pacientemente - na porta da lotérica. Perguntei: “Qual o seu nome?”. “Das Chagas.” Respondeu. Esticou a mão e entregando-me seu cartão de visitas, impresso em alto relevo. Resfolegou: “Quando precisar me ligue!” Eu venho e como toda a sua sujeira!”. Guardei o cartão no bolso. Um salário mínimo? Bem pago, pensei. Aqui confesso: não deveria ter dito que era um capeta! A brincadeira vai sair caro, muito caro. Mania de brincar na hora errada. Acontece. Na volta da lotérica, passei na padaria e comprei pão fresco e duas latinhas de Heineken, na onda do servidor espiritual e do santo ofício do pecado e das tratativas da alma.
João Scortecci
DONATUS, TESTEMUNHA OCULAR DA HISTÓRIA
João Donatus nasceu no ano de 1928, na cidade de Nova Bréscia, no Rio Grande do Sul, conhecida como a “Cidade dos Mentirosos”. Cruzava os dedos e jurava: nunca contei uma mentira! Veio morar na cidade de São Paulo, ainda adolescente, nos anos 1940. Trabalhou no Mercado Central, vendendo secos e molhados, foi coveiro no Cemitério do Araçá e depois funcionário do Mappin, da Praça Ramos de Azevedo, até tirar a sorte grande na Loteria Federal e ficar milionário. Largou o emprego, a namorada, a pensão onde morava no bairro de Santa Cecília e escafedeu-se! Virou cidadão do mundo! Conheceu o Egito, a Itália, a França, os Estados Unidos da América, a Alemanha, o Japão e a Austrália, seu sonho desde criança. Adorava cangurus. Lembro-me que uma vez lhe perguntei sobre o gosto estranho. Disse-me: “Gosto e pronto!” Conhecemo-nos no Mercado de Pinheiros, no final dos anos 1980, numa exposição sobre a história do bairro, da fundação da Aldeia de Nossa Senhora da Conceição dos Pinheiros, de 1560, quando indígenas Tupi migraram para a região, estabelecendo um núcleo próximo ao atual Largo da Batata. João Donatus estava lá, no meio da roda, firme, lorotando. Parei para escutá-lo, também. “Quem é ele?”, quis saber. Alguém me respondeu, no pé do ouvido: “Donatus, a testemunha ocular!”. Ninguém arredava o pé. Contou da sua participação em maio de 1968, em Paris, e na greve geral que ganhou proporções revolucionárias na França; sobre Dallas, no Texas, onde presenciou o assassinato do presidente Kennedy, em 1967; da sua visita ao Cabo Canaveral, em 1969, onde assistiu à subida da Apollo 11, rumo à Lua; da cobertura jornalística que fez da Batalha da Rua Maria Antônia, em 1968, entre alunos da Filosofia da USP e alunos do Mackenzie; do Festival de Woodstock, em Bethel, no estado de Nova York, em 1969, onde acampou, fumou maconha e ainda namorou uma famosa estrela da música; do jogo de futebol em 1969, entre Vasco X Santos, no Maracanã, quando viu Pelé fazer, de pênalti, o seu milésimo gol; do incêndio do Edifício Joelma, em São Paulo, em 1974, onde trabalhou socorrendo feridos; da queda do muro de Berlin, em 1989, quando ajudou a demolir o Muro; do dia histórico das Diretas Já, na Praça da Sé, em São Paulo, no ano de 1984. E, então, calou-se, já tarde da noite. Trocamos cartões e abraços. “Até breve!” Durante alguns anos, vez por outra, aparecia na Galeria Pinheiros, onde, até o ano de 1992, funcionou a Scortecci Editora. Donatus, quando provocado, chamado de papudo, mentiroso, ficava bravo. Mostrava ingressos, passagens, cartas, fotos. Tinha um diário, onde colava e anotava tudo. João Donatus faleceu no ano de 2022, vítima da Covid-19, aos 94 anos de idade. Não nasci na cidade de Nova Bréscia. Juro. Nasci na cidade de Fortaleza, no Ceará. Lá, também gostamos de contar histórias incríveis, cheias de aventura, compridas, duvidosas e alucinógenas. Nunca histórias mentirosas. Jamais! Exageradas, talvez.
PADARIA ESPIRITUAL - MOVIMENTO LITERÁRIO MODERNISTA E SATÍRICO DO CEARÁ
Fortaleza é qualidade ou caráter de pessoas fortes. Em sentido figurado, significa: força moral e firmeza. A minha – engenharia de corpo e alma – atende pelo nome de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção e fica na cidade de Fortaleza, capital do Ceará. Outro dia andei por lá, beijando suas raízes e abraçando sua história. Os canhões de ferro ainda estão por lá. Lanças de fogo apontadas para o mar e o tempo, no alto do monte Marajaitiba. O riacho Pajeú – aquele da minha infância dos anos 1960 – saiu de cena e não mais banha a margem esquerda da fortificação. Secou ou foi canalizado. No meu cenário de lembranças, o Pajeú ainda guarda, escondidos na toca, o mussum preto e o peixe cará. A Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção hoje abriga a sede da 10ª. Região Militar do Exército Brasileiro. Sua construção data de 1649, pelos holandeses, que lhe deram o nome de Forte Schoonenborch – em homenagem ao governador neerlandês da província de Pernambuco – e, depois, em 1654, foi retomado pelos portugueses, comandados pelo Capitão-Mor Álvaro de Azevedo Barreto. Embora Fortaleza tenha se expandido a partir da fortificação, o marco zero da cidade fica na Barra do Ceará, na boca do Rio Ceará, ocupada pelos holandeses em 1603. Quando olho a cidade, vejo o Farol do Mucuripe – os olhos do mar –, o Theatro José de Alencar – belíssimo – e a Praça do Ferreira, referência ao Boticário Ferreira, que, em 1871, quando era presidente da Câmara Municipal de Fortaleza, urbanizou o espaço localizado no coração da cidade. Foi na Praça do Ferreira – em 30 de maio de 1892 – que nasceu a Padaria Espiritual, agremiação cultural que reuniu escritores, pintores e músicos. O objetivo de seus idealizadores – capitaneados pelo poeta e romancista Antônio Sales (1868 – 1940) – era despertar, na sociedade, o gosto pela arte. Foi Antônio Sales quem redigiu seu “Programa de instalação” – em que protestavam contra a burguesia, o clero, a polícia e tudo que fosse tradicional – e foi também um dos principais responsáveis pela publicação do jornal da agremiação, “O Pão”, tabloide de oito páginas. Na Praça do Ferreira, na época, existiam quatro quiosques, abrigando cafés e restaurantes. O Café Elegante, na esquina sudeste; o Restaurante Iracema, na esquina sudoeste; o Café do Comércio, na esquina noroeste; e o Café Java – funcionava também como padaria –, de propriedade de Mané Coco e ponto de encontro das reuniões da agremiação. Além de Antônio Sales, nomes importantes da cultura cearense participaram do movimento: Lopes Filho, Lívio Barreto, Álvaro Martins, Ulisses Bezerra, Adolfo Caminha, Temístocles Machado, Tibúrcio de Freitas, Rodolfo Teófilo, José Carlos Júnior e Antônio de Castro, entre outros. De 1892 a 1896, a Padaria Espiritual publicou 36 números de “O Pão”. O jornal faliu de “caquexia pecuniária”, segundo seu próprio fundador, Antônio Sales. O “Programa de Instalação” não permitia que se usassem, em quaisquer publicações, palavras estrangeiras, numa postura radicalmente nacionalista. A importância do movimento se deu pelo fato de ele haver proporcionado, no Ceará, a consolidação do Realismo e o nascimento do Simbolismo literários e ter prenunciado – conforme alguns historiadores – as marcas do movimento modernista iniciado em São Paulo, em 1922.
João Scortecci
CARTAS DE RILKE AOS JOVENS POETAS SOBRE A ARTE DE ESCREVER
Conheci o poeta Rainer Maria Rilke (1875 – 1926), nos anos 1980, lendo “Cartas a um Jovem Poeta”, de 1929, obra publicada após a sua morte e traduzida no Brasil, pelo crítico e professor húngaro, naturalizado brasileiro por Paulo Rónai (1907 – 1992), com prefácio da poeta Cecília Meireles (Cecília Benevides de Carvalho Meireles, 1901 – 1964). Não foi livro comprado, recebido de presente e muito menos surrupiado. Foi emprestado – não lembro por quem – e depois de lido, devolvido. O livro chegou pelo correio, a mim, jovem poeta, e voltou – envelopado e selado – também pelo correio. O livro de Rilke está na minha lista de indicações de leitura obrigatória para jovens poetas. Em 1903, morando em Paris, Rilke recebeu uma carta de um jovem chamado Franz Kappus, que aspirava a se tornar poeta e pedia conselhos ao já famoso poeta. Algo assim. Tal missiva dá início a uma troca de correspondência, na qual Rilke responde aos questionamentos do rapaz e expõe suas opiniões sobre o que considerava os aspectos verdadeiros da vida: a criação artística, a necessidade de escrever, o valor nulo da crítica e a solidão do ser humano. Franz Kappus (Franz Xaver Kappus, 1883 – 1966) tornou-se oficial militar, jornalista, escritor e também editor de livros. Ficou conhecido como o cadete da academia militar austríaca que escreveu ao poeta Rainer Maria Rilke, em busca de conselhos sobre a arte de escrever. As dez cartas, escritas entre 1902 a 1908, foram publicadas por Kappus, em 1929. Na primeira delas, o mais célebre conselho de Rilke: “Ninguém o pode aconselhar ou ajudar – ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria se lhe fosse vedado escrever?” “Sim. Morreria mil vezes, se preciso fosse”, respondi. Rainer Maria Rilke faleceu em Valmont, na Suíça, no dia 29 de dezembro de 1926, aos 51 anos de idade.
João Scortecci
PAI MORTO E O CHORO GRANDE / Para Luiz Gonzaga do Carmo Paula (19.02.2023 - 03.12.2007)
Pai, boa noite. Estou aflito. Falta-me o abraço da paz. Escrevo aqui, absorto de solidão, tristeza e muito sofrimento. Escrevo-lhe órfão. No peito: tudo dói, profundamente. Meu vazio – de corpo e alma – parece não ter fim. Sou náufrago de mar revolto. Céu escuro e cego. Sou agora terra infértil e devastada. Estou incerto e perdido de alma. Falta-me o ar do sol. Rezo – silencioso – o terço das manhãs. Leio o teu rosto dentro de mim: alegre, amoroso, inesquecível. Escuto risos e histórias. É você? Juntos somos filhos do Ceará: renitente e voraz. Juntos fomos caçadores do mato, lobinhos, escoteiros, torcedores de futebol, soldados da tropa, guerreiros, adultos e mais do que tudo: irmãos de sangue. Você “miolo de lápis” e “tubarão preto”. Eu, admirador! Temos o mesmo toque: medo de ficar sem água! Isso, talvez, explique, procurarmos, sempre, pelas nascentes do destino. Histórias que se cruzaram. Heranças de sangue e cumplicidade. Pai, você partiu. Logo, antes do fim da tarde, terei que vê-lo – morto – no caixão. Confesso: isso me apavora. Outro dia – no pior da demência – fomos lúcidos, conversamos, papo cabeça, lembra? E depois, então, despedimo-nos felizes. Aquele dia foi incrível. Quanto amor e respeito! Um filme inteiro – veloz – passou pela cabeça. Cinquenta e um anos, juntos. Não chorei, ainda. Aguardo-me! A tua foto – junto de mamãe, aquela do porta-retratos: lembra? –, será, sempre, o caminho possível. O portal. Aguardo, então, o momento do choro. Ele virá, eu sei. Não o choro das lágrimas miúdas da noite, das datas dos dias de festas, das horas difíceis e incuráveis. Não. Aguardo o choro feroz, profundo, intenso, aberto, de soluços e aceitação. Eu preciso dele! Hoje estou a cuidar do hospital, da documentação, do túmulo, do velório, das flores, do sepultamento e dos abraços. Assim será. Pai, boa noite.
O DIA DO CHORO GRANDE
Meu saudoso Pai Luiz Gonzaga dizia sempre: Simplifique o trabalho do outro! É o que tento fazer, sempre. O velho Gonzaga – o Tubarão Preto – era apaixonado por fotografias, slides, filmes 8mm e Super 8. Antes de morrer, no ano de 2007, presenteou-me com sua coleção de filmes e um projetor. Disse-me: “João, você precisa comprar uma lâmpada nova para o projetor. Não esqueça!”, alertou-me. O aviso, na época, pareceu-me “irrelevante”. Anotei na cabeça. Depois de dois ou três anos de sua morte – num dia de saudade incontrolável –, isso depois de assistir ao filme “Peixe grande”, uma fábula de amor entre pai e filho, do diretor Tim Burton, e de – finalmente – um choro grande, resolvi, comprar uma lâmpada nova para o projetor e me programar para assistir ao filme número 1 da coleção, do ano de 1967. A lâmpada do projetor chegou, pelo correio, numa quinta-feira. Programei, então, uma sessão especial, para a manhã de domingo. Na hora de colocar o carretel do filme no projetor, pintou uma dúvida. Como é mesmo que coloco o filme no projetor? Abri a tampa do projetor – no lugar onde fica a lâmpada – e lá encontrei um bilhete, dobrado em quatro, explicando tudo, quase um manual. A letra do “canhoto” Gonzaga era um primor. Letra de engenheiro. Colado no verso da tampa do projetor, encontrei, também, um desenho explicativo, passo a passo. “Simplifique o trabalho do outro!”, foi o que ele me disse. Naquele domingo do ano de 2010 – depois do choro grande – descobri que estava curado da dor. Havia – finalmente – vivido o luto. E o dia, então, amanheceu de sol.
ZÉ DO ISQUEIRO, O PIROBOLOGISTA
Conheci, no final dos anos 1960, um pirobologista. Magro e alto. Piscava muito e carregava no bolso um isqueiro de prata. “Filho, isso não é profissão. É suicídio!” Desisti, então, depois que o “Zé do Isqueiro”, profissional de artefatos explosivos, “detonou-se” deste mundo, num piscar de olhos. Uma tragédia! Zé do Isqueiro morreu chamuscado, e seu corpo virou uma tocha de luzes, gases, fumaça e calor. Fui, então, ser goleiro – um “Castilho Voador” – ou, talvez, um Manga ou ainda, um incrível Valdir de Morais. Tive o prazer de conhecer os três! Até passei numa “peneira” para goleiro no time juvenil do Ceará Sporting Club, mesmo sendo torcedor do Fortaleza. Desisti do jogo depois que descobriram que eu só “voava” para o lado esquerdo do gol. A pirotecnia de criança, então, limitou-se a soltar balões com buchas de parafina, bombas rasga-lata, morteiros e rojões de três tiros. Em 1969 – num sábado de julho – foi a minha vez de “explodir”, tocar fogo no quarto e abrir uma cratera na barriga. “O que aconteceu?” “Dei azar!”, respondi. Lendo sobre a coroação de Dom Pedro II, em 18 de julho de 1841, lembrei da história da alma penada do Zé do Isqueiro. Os festejos da coroação do Imperador do Brasil duraram nove dias. É o que dizem. Uma tremenda farra imperial! O fogaréu da noite ficou aos cuidados do pirobologista Francisco de Assis Peregrino. Um mestre estudado na Europa! O palacete imperial – erguido para a coroação de Dom João VI, em 1818 – explodiu e pegou fogo. Os edifícios que estavam ao redor tiveram as suas vidraças estilhaçadas. Quatro pessoas morreram na tragédia. Entre os mortos, o próprio Peregrino. Na hora do fogaréu, o representante do Império Austríaco – O Barão Daiser – teria dito: “O golpe de vista, no momento em que o imperador se apresentou ao povo da balaustrada da varanda, era magnífico e, possivelmente, incomparável.” Até, então, o Barão Daiser não sabia que o palacete de Dom João VI havia cometido suicídio, num piscar de olhos. Vez por outra ainda acordo pensando no Zé do Isqueiro, mesmo tendo desistido da profissão de pirobologista. A cicatriz na barriga – que lembra o mapa do Brasil – não me deixa esquecer do fogaréu que foi a minha infância.
BLACK FRIDAY E AS PANELAS DE PRESSÃO
Black Friday – Sexta-feira Negra, em português – é o dia em que começa, oficialmente, a temporada de compras de final de ano, com promoções e descontos especiais em lojas varejistas, serviços e restaurantes. A data – 28 de novembro – começou nos Estados Unidos da América, um dia depois do Dia de Ação de Graças – Thanksgiving Day –, e hoje é compartilhada em vários países do mundo. A primeira Black Friday do Brasil aconteceu em 2010 – totalmente online –, e reuniu mais de 50 grandes lojas do varejo nacional. Lembro bem do acontecido e do rebuliço que foi na cabeça das pessoas. Três colaboradores da editora me procuraram e pediram para que adiantássemos o pagamento do salário do mês. “Qual a razão?”. perguntei. Explicaram: “É a promoção Black Friday!” Estavam eufóricas. Autorizei, então, e fui procurar saber do babado, na época uma novidade. Descontaram o salário – na hora do almoço – e desceram a Rua Teodoro Sampaio na direção do Largo da Batata, em Pinheiros. “Não demorem!”, pedi. Em vão. Pedido ignorado. Voltaram no meio da tarde, carregando sacolas e uma delas arrastando um imenso saco preto de lixo. “O que é isso?”, quis saber. “Panelas de pressão!”, respondeu. Dentro do saco contei quatro panelas de pressão, das grandes. Silêncio. “Sr. João, estava muito barato, quase de graça, não resisti e comprei!”. Surpreso, indaguei: “E o que você vai fazer com quatro panelas de pressão?” Ela me olhou, indecisa, talvez. “Não sei ainda! Exagerei, né?”. “E o seu salário do mês?”, insisti, preocupado. “Gastei tudo!” Não tinha notado – até então – a fileira de sacolas empilhadas na recepção da editora. Mais de 10. “Sr. João, acho que vou precisar de um vale!”. É a lembrança que tenho na cabeça da primeira Black Friday brasileira, isso no ano de 2010. São 15 anos de lá pra cá! Pesquisei na Internet o ano de 2010 e vejam o que aconteceu na época: Copa do Mundo da FIFA, na África do Sul, Espanha campeã, Dilma Rousseff eleita presidente do Brasil; terremoto devastador no Haiti; resgate bem-sucedido de 33 mineiros no Chile; eleição de Barack Obama nos Estados Unidos e início do Estatuto da Igualdade Racial no Brasil. A gente esquece, né? Tudo coisa importante! E o que ficou de lembrança na cabeça? As quatro panelas de pressão e nada mais! Acontece.
João Scortecci
O ERRANTE DE GIBRAN E OS DESENCONTROS DA VIDA
Dos livros do poeta libanês Gibran (Gibran Khalil Gibran, 1883 – 1931), “O Profeta” (1923), foi o primeiro que li. Comprei o exemplar na Livraria Brasiliense, do editor e livreiro Caio Prado Júnior, localizada na Rua Barão de Itapetininga, próximo à Praça da República, na cidade de São Paulo. “O Errante” (1926) veio depois. Era uma sexta-feira fria, mês de agosto, talvez, do ano de 1972. Na capa, quase um subtítulo: “Parábolas sobre a insatisfação e o desencontro”. Eu tinha pouco mais de 16 anos de idade e a capital paulista era um mistério. Aprendi a amar a cidade, aos poucos, aos goles, um dia de cada vez. A ideia era devorar um talharim a cavalo, no Giovanni, restaurante de balcão, da Rua dos Timbiras, 607, quase esquina com a Av. São João. Eram ainda 11h30. cedo para almoçar e a fome da hora podia esperar mais alguns minutos. Passei reto pela Praça da República, subi a Barão de Itapetininga, até a Brasiliense. Na porta da livraria, dei de cara com Gibran Khalil Gibran, empilhado, de gravata borboleta, segurando um exemplar do “O Errante”. Desconfio que Gibran me aguardava. A loja estava cheia: livro fino, preço justo, capa estranha, feia. Paguei o exemplar e – estranhamente – perdi a fome. Sentei-me, então, num banco sujo e molhado da Praça da República, próximo ao coreto. Parábolas? Gosto delas. Almustafa veio – já nas primeiras páginas do livro – e sentou-se junto, ao lado. Ele falava – parecia uma matraca – e eu, quase um aluno, o escutava. Almustafa falou sobre Gibran, seus livros, sua sabedoria. Então, do nada, silenciou-se. Aproveitei para observar à distância um grupo de crianças que brincavam no coreto da praça. Gritavam e giravam seus corpos. Almustafa parecia distante, triste. “O que se passa?”, perguntei. Ele me olhou, sorriu levemente, juntou as mãos e começou, então, a falar, pausadamente, sobre a insatisfação, a natureza da existência humana e os desencontros da vida. Escutei. Depois, levantou-se e sozinho caminhou até o coreto – as crianças tinham ido embora – e lá desapareceu, dentro de mim.
João Scortecci
OCUPAR-SE OU VIVER EM PERIGO!
Fui uma criança agitada. Inquieta! Descobri que era
imperativo já adulto. Lembro que minha mãe tentou até hipnose, com um padre. O
máximo que ele conseguiu comigo foi me deixar grudado numa parede por alguns
minutos. Disse-me: “Você não consegue se mexer!” Fora isso nada mais. O “olhe
nos meus olhos” virou uma gargalhada e um chute certeiro na sua canela. Teria
dito: esse menino é um capeta, algo assim. As tentativas de acalmar o meu coração selvagem e rebelde foram
muitas. Lembro de algumas. Alguém da família aconselhou a minha mãe Nilce: O
menino tem muita energia! Precisa gastar! Recomendo aulas de tênis. Insistiu.
Mamãe, então, matriculou-me na escolinha de tênis do professor Gadelha, do
Ideal Clube. Duas vezes por semana: segundas e quartas. Na mesma época
descobriram, também, que eu era bruto, violento, agressivo, pavio curto e perigoso. Mamãe Nilce contratou, então, junto, uma professora de piano, nas terças e quintas. Resumo da ópera: tênis segundas
e quartas e piano terças e quintas. "Nilce, isso vai resolver?" Papai Luiz perguntando. A professora de piano - pacientemente – dizia: solta os dedos,
amolece os pulsos, relaxa. E o professor de tênis cobrava: aperta os dedos, segura
a raquete com força, endurece o pulso, agride a bola e bate! Não deu certo. Tentei alguns meses, depois desisti. Primeiro do piano e depois do tênis. Fui, ainda, lobinho e escoteiro, goleiro,
lutador de judô, piloto de carrinho de rolimã, lanceador de arraia com cerol e caçador
de calangos, tijubinas e ratos no riacho do Pajeu. Até os 16 anos, quando vim
morar em São Paulo, continuava o mesmo: imperativo, agitado e violento. Foi no
serviço militar, no ano de 1976, que melhorei, aprendi técnicas de autocontrole
e fiquei amigo de um soldado, mais agitado que eu. Perto dele eu relaxava, sentia-me calmo, nirvânico. Foi ele que me ensinou a única técnica
que funciona para imperativos como eu. Ele disse: “É uma doença e não tem cura!”. E qual o
segredo, quis saber. Ele me olhou e disse: “Ocupar-se ou viver 24 horas por dia em perigo!”.
João Scortecci
O BADALO DO BRONZE VELHO DA IGREJA SÃO GERALDO
O sino - mistura de ferro, bronze e 18 quilos de ouro - pesa quase 2,3 toneladas e mede 1,75 m de altura por 1,70 m de diâmetro. Foi fundido no ano de 1820, pelo artesão Francisco das Chagas Sampaio. Acredita-se que tenha sido confeccionado na Bahia, que, na época, se distinguia na fabricação de campanários. No sino da igreja São Geraldo estão gravados o nome do autor da peça, as armas do Reino de Portugal e trecho do salmo 150: "Tudo quanto tem fôlego louve ao Senhor. Louvai ao Senhor.". Em 1972 o sino foi tombado pelo CONDEPHAAT - Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo. Na história é conhecido como o sino da Independência do Brasil. Foi ele que do alto da torre da antiga catedral da Sé, “anunciou” a chegada do príncipe regente Dom Pedro I na cidade de São Paulo, em 1822. O sino permaneceu na antiga catedral da Sé até o ano de 1913, quando foi transferido para o Mosteiro da Luz. Em junho de 1942, foi doado para a Paróquia São Geraldo (Padre italiano Geraldo Magela, 1726 – 1755), Largo Padre Péricles, S/N, no bairro das Perdizes, São Paulo. O Largo onde a igreja está localizada - entroncamentos da Avenida Francisco Matarazzo, Rua Cardoso de Almeida e Rua Turiaçu - é uma referência histórica, pois abrigou, antes da Paróquia, a Capela de Nossa Senhora da Conceição e Santa Cruz, que se tornou o primeiro templo histórico da região das Perdizes. Vez por outra passo por lá, silencioso e atento, na esperança de escutar no coração da alma o som do badalo do velho e cansado bronze da independência. Tardar-me, tardar-me! E nada.
João Scortecci
LEI DE MURPHY E O PÃO COM OVO DA LANCHEIRA DO ZORRO
Edward Murphy (Edward Aloysius Murphy Jr, 1918 – 1990) foi um engenheiro aeroespacial americano nascido no Panamá e que trabalhou em sistemas de segurança críticos. É conhecido – mundialmente – pela Lei de Murphy, originada do resultado de um teste de tolerância à gravidade por seres humanos. Para poder realizar essa aferição, Murphy construiu um equipamento que registrava os batimentos cardíacos e a respiração de humanos de tolerância à gravidade. O técnico responsável instalou o equipamento de forma errada, e os sensores que deveriam registrar tudo falharam. Murphy teria dito, então: “Se este homem tem algum modo de cometer um erro, ele o fará”. Risos. Virou lei: “Qualquer coisa que possa ocorrer mal ocorrerá mal, no pior momento possível”. Lendo sobre Murphy, no livro “As cinco leis mais famosas do mundo”, uma nota de rodapé me chamou a atenção: “Aquilo que começa do jeito errado provavelmente dará errado”. Atual, né? Anotei. No texto encontrei, ainda, referência à Lei de Clark, ditado popular da cultura ocidental, que “zoa” da lei: “Murphy era otimista!”. Risos. O espírito da Lei de Murphy captura a tendência geral de enfatizar as coisas negativas que acontecem na vida. Eu era menino de tudo, isso no Ceará dos anos 1960, quando escutei, pela primeira vez, a máxima: “O pão cai sempre com a manteiga para baixo”, isso depois que o pão com ovo da minha lancheira do Zorro caiu no chão. “Pega, pega!”, escutei. Impossível. O ovo frito no pão, gema mole, esfacelou-se do pátio de terra do Colégio Cristo Rei. Tudo que pode dar errado dará errado, mesmo sabendo que a chance é de 50% para cada opção. Pesquisando na Internet, ainda sobre a Lei de Murphy, soube que o físico e matemático britânico Robert Matthews, autor do livro “As leis do acaso”, publicou, em 1995, um tratado sobre intitulado “A torrada em queda – A Lei de Murphy e as constantes fundamentais”. Amparado por complexos cálculos matemáticos e experimentos científicos, Matthews demonstrou que “sim, a torrada tem de fato uma tendência inerente para cair com a manteiga para baixo”. Em seus experimentos, ele verificou que, em 9.821 quedas, 6.101 foram com a manteiga para baixo. Com esse estudo, Robert Matthews foi agraciado com um Prêmio Nobel. Interessante. Tenho mais quatro leis para ler, ainda hoje: Lei de Falkland, Lei de Walson, Lei de Gilbert e Lei de Pareto. Algo me diz que vou cair de cabeça nas probabilidades e nas promessas da vida ao acaso. Murphy era – mesmo – um otimista.
João Scortecci
PERDER PAÍSES E A ÂNSIA DE TER UM FIM
O poeta, filósofo, dramaturgo e tradutor português Fernando Pessoa (Fernando Antônio Nogueira Pessoa, 1888 - 1935) nasceu em Lisboa, e é considerado o mais universal poeta português. Pessoa foi educado na África do Sul, numa escola católica irlandesa. Dominava o idioma inglês e foi nele que escreveu o seu primeiro poema. Das quatro obras que publicou em vida, três são na língua inglesa e apenas uma em língua portuguesa: “Mensagem” (44 poemas, em 1934). Como poeta, escreveu sob diversas personalidades (heterônimos): Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e outros. “Viajar! Perder países é" um dos seus mais belos poemas. Quem o lê viaja! Quem parte não fica. E por “não pertencer nem a mim” eu sou muitos. Viajar, assim: “Viajar! Perder países! Ser outro constantemente, Por a alma não ter raízes, De viver de ver somente! Não pertencer nem a mim! Ir em frente, ir a seguir. A ausência de ter um fim, E a ânsia de o conseguir! Viajar assim é viagem. Mas faço-o sem ter de meu, Mais que o sonho da passagem. O resto é só terra e céu.” Como Alberto Caeiro, em "Poemas Inconjuntos", escreveu: “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, Não há nada mais simples. Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus.” Faleceu em Lisboa, no dia 30 de novembro de 1935, com 47 anos e idade.
João Scortecci
LUPERCA E A LOBA DA NOITE DE LUA CHEIA
Lua cheia. Nuvens escuras e algumas estrelas no céu. Eu e meus lobos: famintos. Os lobos são mamíferos canídeos. Família grande: cães, lobos, chacais, coiotes e raposas. São sobreviventes da Era do Gelo, originário do Pleistoceno Superior, cerca de 300 mil anos atrás. Existem 36 espécies de lobos no planeta. No cerrado brasileiro vive selvagem o lobo-guará. Já estive frente a frente com um. Olhamo-nos: olho no olho, no silêncio da noite. Ameaçou fugir, mas não o fez. Impulso inato, instintivo. O lobo-guará vive em tocas no solo. São solitários e tímidos. Alimentam-se de roedores, aves, insetos e répteis. A relação de amor e ódio com os humanos é mística, supersticiosa e mitológica. São deuses na mitologia nórdica e na história estão associados ao surgimento de Roma, alimentando os gêmeos Remo e Rômulo. Diz à lenda que a loba Luperca, aproximou-se das águas do rio Tibre para beber água e os encontrou à deriva, num cesto. Não tivemos medo, mesmo aguçados. Caminhamos juntos, lado a lado, até o canteiro das galinhas tristes. Alvoroço. Barulho de asas. Disse-lhe: apenas uma! Foi o que fizemos. Cada bicho faminto - Eu e Ela - abocanhou a sua presa. Felizes, seguimos em direções opostas: eu de volta aos meus sonhos de lobo e ela, veloz, na direção das árvores do bosque. Dentro de nós existem dois lobos carnívoros. Um bom e outro mau. Naquela noite de lua cheia nos encontramos famintos, no coração imaculado de Reia Sílvia. Abençoados? Talvez. Abraçamo-nos, saciados. Instintivos! Partilhamos a fome da terra, as emoções selvagens da alma, o equilíbrio e as razões da vida. E o tempo passou. Nunca mais reencontrei Luperca, a loba das águas do rio Tibre. Nem também Reia Sílvia, a deusa do monte Palatino. Outro dia, ferido e selvagem revisitei o canteiro das galinhas tristes. Elas continuam lá: alvoroçadas e solitárias. Até quando? Não sei.
João Scortecci
UTOPIAS E DISTOPIAS DO DIA 22 DE NOVEMBRO DE 1963
Das utopias. O presidente Kennedy (John Fitzgerald Kennedy, 1917 - 1963) foi assassinado em Dallas, no dia 22 de novembro, com um tiro na garganta e outro na cabeça e, no mesmo dia, o escritor Huxley (Aldous Leonard Huxley, 1894 - 1963), suicidou-se, em Los Angeles, com uma injeção “amiga” de LSD. Huxley foi editor da revista “Oxford Poetry” e publicou contos, poesias e literatura de viagem. Foi indicado sete vezes para o Prêmio Nobel de Literatura, mas nunca ganhou a cobiçada estatueta. Huxley foi um desbravador da literatura e da consciência humana. Autor de clássicos imortais como “Admirável Mundo Novo” e “As Portas da Percepção”, explorou o uso de alucinógenos como a mescalina, o LSD e outros psicodélicos, a fim de expandir a consciência e descobrir novos horizontes do pensamento humano. A experiência com drogas psicodélicas foi tão importante para Huxley, que o autor planejou deixar a vida numa viagem de LSD - e, com a ajuda de sua mulher, assim o fez. Nos aproximamos nos anos 1980, quando li e reli a sua obra. Na biografia do verso de capa do livro "Admirável Mundo Novo", o ano de sua morte: 1963! Na época - a data de 22 de novembro de 1963 - passou batida e somente hoje, depois de muitos anos, registro a distopia: Huxley suicidou-se no mesmo dia do assassinato de Kennedy! Pergunta: Onde eu estava mesmo naquele trágico dia? Lembro. Estava em Fortaleza, no Ceará, na casa de Dóris Holanda, mãe dos amigos de infância: Nelson, Leda Maria, Alexandre, Guilherme, Raul e Paulinho. Colávamos figurinhas de times de futebol, de jogadores do Santos, de Pelé e do Botafogo, de Garrincha. Panela com grude - para colar as figurinhas - e trapos de pano, para limpar os excessos de cola. Inesquecível! Foi quando o plantão do radio-jornalismo “O Seu Repórter Esso” - nos alertou da tragédia: “O 35° presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, acaba de ser baleado e morto, em um atentado na cidade de Dallas, nos Estados Unidos”. Era uma sexta-feira, 16h30 no horário do Brasil e 12h30, hora local de Dallas, do dia 22 de novembro de 1963. Eu tinha 7 anos de idade e gostava de Kennedy. Assustados, guardamos os álbuns, as figurinhas e fomos embora, cada um para a sua casa. Mamãe Nilce estava em casa, colada no rádio da sala e papai Luiz, logo chegou. “E agora?” foi o que mamãe Nilce perguntou. Silêncios. Utopias, distopias, balas de LSD, alucinógenos, figurinhas de times de futebol, admirável mundo novo... Lembro-me de tudo! Sobre Huxley precisei avançar no tempo, viajar no compasso-luz da história e, então, também, morrer junto. Foi o que fiz. Aldous Huxley, já impossibilitado de falar, devido a um câncer terminal, escreveu um bilhete a Laura Huxley, sua esposa: "LSD, 100 microgramas, intramuscular". Huxley, faleceu às 17h21, aos 69 anos de idade.
João Scortecci
LIEV TOLSTÓI, O LEÃO DO LIVRO GUERRA E PAZ
Eu e o Google. Digitei “Liev” e ele me “entregou” Live: show, sarau, programa, emissão ou qualquer outro evento do mesmo gênero gravado ao vivo e transmitido remotamente, on-line. Perguntei: E o Tolstói? O russo autor de “Guerra e Paz”? Fechei o navegador e digitei novamente: “Liev”. O buscador - desta vez - entregou-me Liev Tolstói, o Leão (1828 - 1910). Guerra e Paz, romance histórico escrito por Tolstói e publicado - aos goles - entre 1865 e 1869, no “Russkii Vestnik”, um periódico famoso da época. O livro narra a história da Rússia na época do estadista e líder militar francês Napoleão Bonaparte (1769 – 1821) e as guerras napoleônicas. O primeiro rascunho de "Guerra e Paz" foi concluído em 1863. Um terço de todo o trabalho já havia sido publicado no “Russkii Vestnik” com o título "1805". Não satisfeito com o final, Tolstói reescreveu entre 1866 e 1869 toda a obra e a publicou sob o título definitivo de "Guerra e Paz". A obra completa, em russo, tem 1.225 páginas e está dividida em quatro livros, quinze partes e dois epílogos - um narrativo e o outro temático. Fechei o Google, salvei o texto na área de trabalho e fui dormir, com a biografia de Liev Tolstói na cabeça. Acordei, reli o texto, fiz correções e abri, novamente, o Google. Digitei pela terceira vez “Liev”. Ele entregou: Isaac Liev Schreiber, ator, diretor, roteirista e produtor norte-americano. Adoro sacanagens! Liev Tolstói foi pai de 13 filhos com Sophia Andreevna Behrs, sua esposa, sendo 7 deles, durante o período que escreveu e reescreveu “Guerra e Paz”. Sobre a morte Liev Tolstói escreveu: “Deus criou a morte. A esperança era que uma morte imprevisível fizesse os homens valorizarem a vida, mas em vez disso criou ainda mais desigualdade à medida que os fortes ameaçavam os fracos com a morte.”. Liev - que significa "leão" em russo - morreu de pneumonia, aos 82 anos de idade, na estação de trem de Astapovo, centro administrativo do distrito de Lev-Tolstovsky de Lipetsk Oblast, na Rússia.
João Scortecci
REVISTA PLAYBOY E O ENCONTRO COM SANDRA BRÉA
Revista masculina. Até pensei noutra classificação, sem sucesso. Ficou, então: revista masculina! Todo mundo sabe do que se trata. Colecionei a “Playboy” brasileira desde os primeiros números, do ano de 1975. Mais de 150 edições, entre as 487 publicadas em 40 anos. Comprei também as edições especiais. Imperdíveis! Numa das mudanças de endereço, tive de me desfazer delas. Uma tragédia! A revista deixou de circular oficialmente em 2015. Diferentemente dos “mentirosos”, eu comprava a revista por uma única razão: desfrutar da nudez, dos encantos e da sensualidade das mulheres brasileiras – únicas, inconfundíveis e belas. Nos anos 1990, conheci o mestre J.R. Duran, que fotografava, como ninguém. Fotos belíssimas! De memória – impossível esquecer –, lembro-me dos ensaios fotográficos de Sônia Braga e Letícia Spiller. Inesquecíveis! Letícia Spiller, até hoje, é a mulher mais sensual que já vi. Outras mulheres da coleção de “Playboy” brasileira: Lúcia Veríssimo, Claudia Ohana, Luma de Oliveira, Bruna Lombardi, Cléo Pires, Maria Zilda, Adriane Galisteu, Joana Prado, Carla Marins, Sandra Bréa, Betty Faria, Juliana Paes, Deborah Secco, Grazi Massafera, Ana Paula Oliveira, Isadora Ribeiro e Mel Lisboa. Devo ter esquecido de muitas. Perdão! Uma única decepção. O jeito foi jogar a revista fora. Faz parte. No final dos anos 1970, ainda aluno da Universidade Mackenzie, comprei uma rifa de formatura, com quatro números, cujo prêmio era um jantar no Terraço Itália, na capital paulista, e um encontro com a atriz Sandra Bréa. Perdi. O ganhador, um amigo da faculdade de Ciências Econômicas, revendeu, a peso de ouro, o bilhete premiado. Quem comprou exigiu segredo mortal – foi o que ele me disse na época. Sandra Bréa – belíssima – foi expoente do Movimento de Arte Pornô dos anos 1970. Em 1993, contraiu o vírus HIV. Faleceu no ano 2000, vítima de um câncer de pulmão. Meu avô José Scortecci, já idoso, morou durante um ano no apartamento dos meus pais, Luiz e Nilce. Depois foi para a Associação Beneficente “A Mão Branca” de Amparo aos Idosos, na Avenida Santo Amaro. Adorava dormir sentado na poltrona da sala. “Vovô, quer dar uma olhada na revista?” Era uma “Playboy”. Ele acordou, abriu os olhos e folheou a revista, página por página. Molhava o dedo na língua e, vez por outra, ajeitava os óculos no rosto. Folheou a revista e depois deu a sua sincera opinião: “Magrinhas, né?”. Risos. Antes que eu protestasse, sentenciou: “Mulher de verdade era a Marlene! (Victória Bonaiuti,1922 – 2014)". Silêncio. Foi então a minha vez de dar o troco: “Gordinha, né?”. Vovô não gostou. Devolveu a revista, coçou o saco e fechou os olhos, fingindo sono. Gosto é gosto! Vovô José Scortecci, editor, gráfico, dono de lotérica, proprietário de casa de secos & molhados e fazendeiro, faleceu em 1988, aos 86 anos de idade.
João Scortecci
NO TEMPO DO PESTAPE E DA COLA DE BENZINA
Abri a Scortecci Editora no ano de 1982. Já trabalhava com edição e impressão de livros, desde 1978. O primeiro computador da empresa chegou em 1992, e a Internet – discada e barulhenta – no início de 1998. Costumo dizer que sou do tempo do pestape, da cola de benzina, do estilete e das máquinas IBM Composer, de esfera. O primeiro registro de domínio na Internet foi o “scortecci”, em 1998, e a primeira loja de venda de livros “Asabeça – cabeça que voa”, hoje Livraria Scortecci, em 1999. A partir dos anos 2000, a Scortecci aderiu às novas tecnologias - principalmente na parte da impressão gráfica. Com a lei nº 11.788/2008, Lei do “estudante estagiário”, o quadro de colaboradores cresceu e novos setores foram criados na empresa. É dessa época a inesquecível Maria Luíza, 18 anos de idade, estagiária de Comunicação. Cuidava do site, da loja e do cadastro da editora. De volta de uma viagem pelo interior de São Paulo, encontrei Maria Luíza chorando, arrancando os cabelos. “O que aconteceu?” Ela, aos prantos, respondeu-me: “Sr. Scortecci, estou desconectada do mundo! A Internet não funciona – travou tudo – e eu não sei mais o que fazer!”. “Não?” Maria Luísa estava totalmente fora de si. Enlouquecida! Justificou-se: “Preciso falar – urgente – com um autor”. “Calma! Calma!”. Pedi: “Deixa olhar a ficha de atendimento do autor.” Ela me entregou a ficha. Completa, legível, com número de telefone e tudo, melhor impossível. “Você sabe que aparelho é esse na sua mesa?”, perguntei, apontando para o aparelho de telefone. “Sei. Claro. Um telefone. Por quê?” “Sabe para que serve?”, insisti. “Claro!”, respondeu-me, já de cara feia. “Que tal você discar para o autor?” “Posso?” Não respondi. Virei as costas e fui embora. Foi o que ela fez. Discou e conversou – demoradamente – com o autor. Ficaram amigos. Naquele mesmo dia, no final do expediente, reuni todos os sete estagiários da casa para uma reunião, um bate-papo. Assunto: os primórdios da editora. Contei-lhes, então, que, antes dos computadores, da Internet, dos aparelhos de fax, das copiadoras e impressoras, dos scanners e, mais recentemente, dos aplicativos, do CD, do pen drive, dos arquivos nas nuvens, dos celulares, dos smartphones, das redes sociais e outros, tudo era – muito – diferente e funcionava. Disse-lhes: “Sou do tempo do pestape, da cola de benzina, do estilete e das máquinas IBM Composer, de esfera.” Deram risada, de tudo. De mim também, claro. Um detalhe importante: naquele mesmo ano tratei de trocar todos os aparelhos de telefone de discar por moderníssimos aparelhos de teclar, sem fio. A ficha caiu, de vez. Melhor impossível.
João Scortecci
JOÃO GUIMARÃES ROSA E O LIVRO DE POESIAS "MAGMA"
Não sabia. Confesso: foi surpresa! Guimarães Rosa poeta? “Magma” foi escrito em 1936 e publicado postumamente pela Editora Nova Fronteira, em 1997. O livro de poesias sempre foi considerado uma obra menor pelo autor de “Sagarana” (1946), “Grande Sertão: Veredas” (1956) e outros. Curiosidade: “Magma” foi vencedor do concurso literário criado pela Academia Brasileira de Letras (1936), com o pseudônimo “Viator” (Viajante). Durante sua vida, Guimarães Rosa (João Guimarães Rosa, 1908 – 1967) não demonstrou qualquer interesse em publicá-lo, chegando a dizer em entrevista: “ [...] escrevi um livro não muito pequeno de poemas, que até foi elogiado. [Depois] passaram-se quase dez anos, até eu poder me dedicar novamente à literatura. E revisando meus exercícios líricos, não os achei totalmente maus, mas tampouco muito convincentes”. Em “Magma”, está o poema “Sono das Águas”: “Há uma hora certa,/ no meio da noite, uma hora morta,/ em que a água dorme. Todas as águas dormem:/ no rio, na lagoa,/ no açude, no brejão, nos olhos d’água./ Nos grotões fundos.// E quem ficar acordado,/ na barranca, a noite inteira,/ há de ouvir a cachoeira/ parar a queda e o choro,/ que a água foi dormir…”. Em 6 de agosto de 1963, Guimarães Rosa foi eleito, por unanimidade, membro da Academia Brasileira de Letras, sendo o terceiro ocupante da cadeira n.º 2, que tem como patrono Álvares de Azevedo. Adiou a cerimônia de posse por quatro anos, por que temia morrer de emoção. No seu discurso de posse, em 16 de novembro de 1967, afirmou: “…a gente morre é para provar que viveu”. Guimarães Rosa faleceu quatro dias depois, vítima de um ataque cardíaco, na cidade do Rio de Janeiro, em 19 de novembro de 1967, aos 59 anos de idade.
João Scortecci