O poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht (Eugen Bertholt Friedrich Brecht, 1898 - 1956), morreu alguns dias depois do meu nascimento. Eu no Ceará e ele em Berlim. Fim das coincidências. Brecht poeta tem lá os seus encantos literários. Merece ser lido! Em mãos o livro “Bertolt Brecht: Poesia: 60” - edição bilíngue, ano 2019, editora Perspectiva, 584 páginas. Para Brecht a poesia expressa tudo que está vivo, limpo ou sujo. Ele canta até a latrina, para ele um lugar plácido em que a gente se recosta tendo em cima estrelas e debaixo merda. Muita merda! Bertolt Brecht não admite meio termo: o sujeito deve ser frio ou quente. Morno? Nem a pau! Branco ou preto. Para Bertolt Brecht “O cinza me faz mal.” Lendo Brecht lembrei-me da expressão comumente usada no meio literário: “Não li e não gostei”. Dizem que a expressão “não li e não gostei” foi pronunciada pela primeira vez por Oswald de Andrade (1890 – 1954), quando, então, perguntado sobre o livro “Riacho doce” (1939) do romancista e jornalista paraibano José Lins do Rego (1901 – 1957). Outro dia um autor “maçante” publicou numa antologia da Scortecci uma poesia em homenagem as “latrinas” e as “merdas” do mundo. Texto ruim. Fedorento. Alguém do editorial alertou-me: “Scortecci, olha isso! Vamos publicar?”. Respondi: “Sim”. Coloca os acentos, passa o revisor ortográfico e envia o material para a produção. Nunca - desde os anos 1980, do início da editora - recusei publicar um texto, um livro ou um autor. O cinza me faz bem! Diferente de Bertolt Brecht, gosto dos meios-tons, das ilusões, dos sonhos e das sombras da poesia. Sobre o canto da latrina do alemão Bertolt Brecht já vivi algo parecido, num camping selvagem, no final dos anos 1970: “um lugar plácido em que a gente se recosta tendo em cima estrelas e debaixo merda. Muita merda!” Depois da antologia pronta, o autor, no dia do lançamento, no estande da editora, na Bienal do Livro de São Paulo, procurou-me e confessou: “Pensei que você fosse cancelar minha inscrição na antologia!” Disse-lhe: Nem a pau! Ele – surpreso – fez cara de bunda. Já disse e repito: O cinza me faz bem!
João Scortecci
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BERTOLT BRECHT: O CINZA ME FAZ MAL!
PANTHÉON DE PARIS, VICTOR HUGO E A SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS
Conheci o “Panthéon de Paris” no ano de 2010. Monumento estilo neoclássico localizado no monte de Santa Genoveva, no 5.º arrondissement de Paris. Os arrondissements de Paris correspondem a uma divisão administrativa que decompõe a comuna de Paris em vinte arrondissements municipais, em pleno Quartier Latin. Desejos parisienses: visitar o túmulo do poeta, Victor Hugo (Victor-Marie Hugo, 1802 - 1885), autor de “Les Misérables”, conhecer a catedral de “Notre-Dame", a Biblioteca de Santa Genoveva - com sua arquitetura interna com arcos em ferro aparente - e, por fim, conhece a “Sorbonne Université”. Impossível: tudo num mesmo dia! Optei, então: pela Sorbonne Université e a cripta de Victor Hugo, no “Panthéon de Paris". Foi o que fiz. O romancista, poeta e dramaturgo francês Victor Hugo passou a infância entre Paris, Nápoles e Madrid. Considerado um menino precoce, tendo sido, em 1817, aos 15 anos de idade, premiado pela Academia Francesa, por um de seus poemas. Em 1821 publicou seu primeiro livro de poesias, “Odes et poésies diverses” (Odes e Poesias Diversas), com o qual ganhou uma pensão, concedida por Luís XVIII - Luís, o Desejado, e em 1822, publicou o seu primeiro romance, "Han d'Islande" ("Hans da Islândia"). Em 1825, aos 23 anos, recebeu o título de “Cavaleiro da Legião de Honra” e, junto com outros escritores, ajudou a criar um “Cenáculo” literário. “Cenáculo” - que significa sala de refeições - é o termo usado para o local onde ocorreu, de acordo com os cristãos, a “Última Ceia” e onde hoje se encontra um grande templo, no Monte Sião, em Jerusalém. Um “cenáculo” de escritores! A ideia - iluminada - levou-me, então, de “corpo e alma” até o filme “Sociedade dos Poetas Mortos” (1989), do gênero drama, dirigido por Peter Weir, escrito por Tom Schulman e estrelado por Robin Williams. Uma sociedade secreta! Victor Hugo morreu em 22 de maio de 1885, aos 83 anos de idade. De acordo com seu último desejo, seu corpo foi enterrado no mausoléu do “Panthéon de Paris”, ao lado de Voltaire, Rousseau, Marie Curie, René Descartes e Alexandre Dumas. Visitá-los foi memorável. Na tarde daquele mesmo dia, no por do sol de Paris, sente-me defronte do Panthéon e lá fiquei, entregue, até a vida escurecer de vez e me levar, perdido.
João Scortecci
JANE FONDA E O JEEP BARBARELLA
O filme franco-italiano de ficção científica “Barbarella” estreou nos cinemas do mundo no ano de 1968. O filme, uma comédia erótica, dirigido por Roger Vadim (1928 – 2000), baseado nas histórias em quadrinhos do escritor, roteirista e ilustrador francês Jean-Claude Forest (1930 – 1998), estrelado pela atriz, escritora e ativista Jane Fonda (Jane Seymour Fonda, 1937 - ), marcou época. Sucesso de público e bilheteria. Naquele ano, a cidade de Fortaleza ganhou bares, boates e lojas, com o nome de “Barbarella”, em homenagem ao filme e a Jane Fonda, musa sexual dos anos 1960. O filme – abertura disponível no Youtube – começa assim: Jane Fonda despe-se da roupa de astronauta, na gravidade zero e nua, dá piruetas pela cápsula espacial. É o que ficou na lembrança: a nudez de Jane Fonda. Meu pai Luiz era apaixonado por ela. Deve ter assistido ao filme uma dezena de vezes. Imagino. Quando comentava as “piruetas” de Barbarella, na gravidade zero, seus olhos brilhavam. Na época não pude assistir: tinha, apenas, 12 anos de idade. Mas a imagem ficou e reapareceu num Jeep. Durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos da América e Aliados estabeleceram bases navais e aéreas no Nordeste brasileiro, incluindo a capital do estado do Ceará. Com o fim da guerra, as bases foram desativadas e incorporadas aos aeroportos e instalações locais. A presença militar dos EUA no Ceará foi desativada em 30 de junho de 1945. Parte do saldo de guerra – o material excedente deixado pelos militares – foi vendido ao Exército Brasileiro, outra parte, para civis e colecionadores e outro tanto foi banhado no óleo cru e enterrado no litoral do Ceará. Em 1947, jangadeiros e curiosos começaram a desenterrar o material descartado. Foi encontrado de tudo: inclusive dezenas de Jeeps, caçambas, geladeiras, fogões e roupas. No caso dos Jeeps, o óleo cru conservou os veículos contra a corrosão e a maresia. Algumas peças foram desenterradas em ótimo estado de conservação. Em 1970, papai Luiz e meu irmão José compraram o Jeep que batizamos de “Barbarella”. O veículo militar norte-americano – todo original – foi reformado: motor e pintura. Virou sucesso nas ruas e praias de Fortaleza. Aprendi a dirigir no Barbarella, câmbio de três marchas, tanque de gasolina embaixo do banco do motorista e bancos duros de doer. O Jeep Barbarella ficou na família até o final dos anos 1970, quando foi vendido. Nossos planos: morar na cidade de São Paulo. Foi o que aconteceu. Luiz, irmão mais velho, veio em 1969; José Henrique, em 1970; eu em 1972; Ana Cândida, em 1979; e papai e mamãe, em 1984, depois de morarem por um tempo em Pouso Alegre/MG. Perder Barbarella foi doloroso. Aconteceu. Imagens eternas, inesquecíveis: Barbarella, na gravidade zero, navegando nas praias do mar do Mucuripe.
João Scortecci
VERDADES E VERSÕES DOS LIVROS
Não estávamos lá! A História contada nos livros: farsa ou verdade? Estudos afirmam que parte dela – quanto? – não corresponde aos fatos reais, de verdade absoluta, nem de farsa completa. Exemplo: a história do Brasil. Era criança – isso no Ceará dos anos 1960 –, quando o professor de história nos contou a versão não oficial da Independência do Brasil. Arregalei os olhos. Será? Levei a “versão não oficial” para o meu pai Luiz, na hora do almoço. Papai escutou. Parecia distante, pensativo. Terminou o almoço, comeu a sobremesa – duas rodelas de abacaxi – uma xícara de café preto, um gole de Drambuie e, por fim, acendeu um imenso charuto cubano. Esperei, pacientemente. Olhou-me e perguntou: “Filho, o que garante que o seu professor de História está dizendo a verdade? Ele estava lá, por acaso? Certeza que não!”. Deitou-se, então, na rede da varanda e dormiu. Na aula seguinte de História, leve a dúvida para o professor: “Professor, como o Senhor sabe que a sua história sobre a Independência do Brasil é a verdadeira?”. Silêncio. O professor fez cara feia. Surpreso? Talvez. Um amigo da classe me cutucou e resmungou no meu ouvido: “Cala a boca!”. Foi o que fiz. Passei de ano escolar com nota 5, o suficiente para escapar da recuperação. Desde criança – confesso – sou apaixonado por História. Juro: deveria ter estudado História! Tenho amigos historiadores, muitos, e adoro escutar sobre suas descobertas, suas versões, suas meias verdades. Um detalhe: nós escritores também somos assim, meio mentirosos, adoramos inventar narrativas. Acessei a IA – Inteligência Artificial e fiz a pergunta em aberto, aquela, de 55 anos atrás, que ficou sem resposta. A IA, de pronto, respondeu-me: “A história contada nos livros não é uma verdade absoluta ou uma mentira. É uma interpretação dos fatos baseada em evidências. A História é uma ciência social, não exata, e o conhecimento histórico está em constante processo de revisão e reinterpretação à luz de novas fontes e perspectivas. Os livros buscam a verdade por meio da análise de fontes históricas, mas a narrativa final é influenciada pela subjetividade do historiador e pelo contexto em que o livro foi escrito.” Papai Luiz tinha razão. Hoje, relendo o meu diário, o caderno número 3, encontrei o dia do acontecido, da pergunta feita para o professor de História, sobre a Independência do Brasil. Refiz, então, a pergunta, desta vez para a IA. Ela, desconfiada, respondeu-me: “A IA não sabe se uma história ou um livro é verdadeiro ou falso, pois ela não entende a verdade da mesma forma que os humanos. A Inteligência Artificial é uma ferramenta que gera respostas com base em padrões estatísticos e dados em que foi treinada, e não em uma compreensão empírica ou consciência da realidade.”. Entendi, acho. Aqui com os meus Dragões da Independência, Cavalaria Imperial de Dom Pedro I: “Gostava mais da versão antiga, romantizada, contada nos livros da minha infância!”. Era assim: Pedro no seu cavalo, às margens do riacho do Ipiranga, erguendo sua espada e gritando: “Independência ou morte!”. Ponto. Quando conheci, no Museu do Ipiranga, o quadro pintado por Pedro Américo (1843 – 1905), sobre o “Grito do Ipiranga”, lembrei-me da história contada pelo professor de História: “Nem verdade absoluta, nem farsa completa!”. Perguntei-lhe: “Você estava lá?”. Silêncio. Um desconhecido me cutucou e resmungou: “Cala a boca!”. E acrescentou: "Você sabia que Pedro Américo, o pintor, quando da Independência do Brasil, ainda não havia nascido?". Continuou, irado: "Sabia que a obra foi uma encomenda de Pedro II, pai de Pedro I, e que ela só ficou pronta em 1888?" E completou: "Ele não estava lá!". Naquela tarde – de reminiscências – fiquei ali parado, perdido, olhando durante horas o belíssimo quadro de Pedro Américo, analisando as fragilidades da história: apaixonante e cruel. Feita de verdades e mentiras. Desconfio que a IA não sabe do que falo. Não estava lá, nunca esteve, nunca vai estar em lugar algum. Calei-me, então.
João Scortecci
O EDITOR E TIPÓGRAFO ALDO MANUZIO E O LIVRO DE BOLSO
"Encheiridion" (do grego "enkheiridion" / "em-mão") significa livro portátil, livro de bolso: aceito, interessante, mas incompreendido por muitos. Encontrei o termo "encheiridion" lendo a biografia do editor e tipógrafo italiano Aldo Manuzio (Aldo Pio Manucio, 1449 – 1515), a quem se atribui a “invenção” do livro de bolso, sendo, portanto, considerado o precursor do livro de bolso moderno. A definição de livro de bolso – nos dicionários e na Internet – é genérica, vaga, valendo-se, determinantemente, quanto ao formato e ponto. Formatos mais usados: 10,5x14,8cm, 11x18cm e 12x18cm. Na coleção Primeiros Passos, sucesso editorial da Editora Brasiliense, dos anos 1980, foi usado o formato 11,5x16cm. No Brasil, hoje, as editoras e gráficas usam, quase sempre, o formato 12x 18cm, com mancha de 9,8cm, o dobro das medidas de uma coluna padrão de jornal. Confesso: tenho visto de tudo. As características técnicas de um livro de bolso – capa flexível, papel comum, preço popular – deixaram, praticamente, de existir. Hoje, o mercado publica livros de bolso com encadernação de luxo, capa dura, papel de qualidade, reserva de verniz e relevo. No século XIX, na Europa, já existiam edições baratas, como as da editora alemã Tauchnitz e a inglesa Routledge’s Railway Library, com publicações voltadas para viajantes, mas o "boom" veio depois, em 1931, com a editora alemã Albatross Books, em 1935, com a editora britânica Penguin Books, e, em 1939, com a americana Pocket Books. Durante a Segunda Guerra Mundial, estima-se que a Alemanha tenha queimado mais de cem milhões de livros. As forças aliadas, por sua vez, apostaram no poder de entretenimento dos livros, para que seus soldados suportassem melhor a guerra, e decidiram, então, enviar-lhes companheiros literários. Foi assim que o livro de bolso, na época batizado de “Edições para as Forças Armadas” ganhou escala, com tamanho e peso reduzidos, para que os soldados pudessem guardá-los nos bolsos dos uniformes ou em suas mochilas. Os livros de bolso – até hoje – sofrem preconceito por parte de muitos: autores, editores, livreiros e leitores. As razões? Muitas. Listá-las, algo impossível. Já escutei de tudo. Na minha opinião nada conclusivo, que justifique a aversão. O tipógrafo Aldo Manuzio imprimiu cerca de 150 títulos. Inovou suas edições com o uso da letra cursiva, estilo de escrita manual. Desenvolveu o conceito de coleções temáticas, de identidade e coesão visual para livros. Contribuiu para a padronização do uso da pontuação, incluindo a vírgula e o ponto e vírgula e, criou, ainda, um Conselho Editorial, responsável pelas diretrizes básicas de suas publicações. Em 1494, em Veneza, junto com o tipógrafo e editor italiano Andrea Torresano (1451 – 1528), fundou a Aldina Press (Prensa Aldina), onde foram publicadas as célebres edições aldinas dos clássicos. A Prensa Aldina é famosa na história da tipografia, entre outras coisas, pela introdução do itálico. Aldo Manucio dedicou a parte final de sua vida à publicação e disseminação de textos raros e à preservação de manuscritos gregos. Acreditava que obras de autores como o filósofo Aristóteles e o dramaturgo Aristófanes, em sua forma original em grego, eram mais puras e fiéis, sem as interferências de traduções. Tudo isso lhe rendeu respeitabilidade como editor e tipógrafo e um lugar de destaque na história do livro.
João Scortecci
João Scortecci
ANTÔNIO HOUAISS E O "ENTERRO DOS OSSOS"
Ricos e pobres – cada um na sua – costumam, depois das festas de final de ano, celebrar, em data única, o enterro dos ossos! Sempre sobra alguma coisa. Verdade. No Ceará dos anos 1960, a carcaça do peru desfiado na véspera, enriquecia a canja das almas, e as sobras, a farofa de ovo. Farofa vitaminada, dizíamos. Na virada do Ano Novo, era a vez dos ossos do pernil de porco. Farra gastronômica! Todo ano a mesma promessa: muita comida! Desperdício. E as sobremesas: Pudim de leite, pavê, manjar branco com calda de ameixa, doce de leite com queijo e sorvete de chocolate. “Enterro dos ossos”, no Dicionário Houaiss significa “banquete, aproveitando o que sobrou”. O amigo Antônio Houaiss era um “crânio” brilhante. Gostava de contar causos gastronômicos e, quando o fazia, usava toda a maestria de um filólogo gourmet. No final dos anos 1980, eu, Houaiss e o escritor e artista plástico Enio Squeff, depois de uma reunião na UBE, fomos comer uma "pasta" no restaurante Gigetto. O Mestre Houaiss adorava pratos exóticos, impróprios, explosivos, diferentes. Perguntei-lhe: “Qual de todos lhe foi mais difícil comer?”. Houaiss, na lata, respondeu: “Cérebro de macaquinho vivo!”. Depois, sem pressa, fatiou-nos com sabedoria e inteligência sua cerebral aventura, num pequeno país do leste europeu. O estômago virou, confesso. O povo do restaurante, vizinhos de mesa e até os garçons fecharam o cerco para saborear a sua preciosa contação. Privilégio escutá-lo. Desisti da "pasta". Houaiss, não. Comeu com gosto. Raspou o prato. Tarde da noite, o restaurante se esvaziou e tivemos – infelizmente – que ir embora. “Sobremesa?” “Não”, respondi. Talvez tenha sido a única vez na vida confesso - em que recusei um pudim de leite, um Petit gateau ou um Romeu e Julieta. Lá fora – na pauliceia desvairada – acontecia uma prévia alvorada. Mestre Houaiss nunca mais se repetiu na minha vida. Houaiss faleceu no dia 7 de março de 1999, aos 83 anos de idade. Lembro-me de um assunto daquela noite: Disse-nos: “Quero viver para o enterro dos ossos da virada do século!” Não deu tempo. Bateu na trave. Bateu saudade. Bateu no tempo dos ossos e ainda dói.
João Scortecci
BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS: "A LEITURA PARA QUEM AINDA NÃO APRENDEU A LER
Morre o líder, morre a ideia! Triste isso. Sina? Talvez. Lendo sobre o trabalho do escritor e professor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós (1944 – 2012), deparei com o manifesto escrito por ele, “Movimento por um Brasil Literário" ( MBL), do ano de 2009. Encontrei o manifesto completo na página de uma associação que, na época, apoiou o movimento. Encontrei, também, o endereço do movimento na Internet, mas fora do ar. No endereço (brasilliterario.org.br) localizei algo sobre como funciona o Sisu, o processo de seleção para a universidade e uma explicação de como participar do processo de Inscrição do Sisu. Nada sobre o MBL, infelizmente. O que consegui apurar: "O Movimento por um Brasil Literário (MBL) encerrou formalmente suas atividades devido à falta de recursos financeiros para manter suas ações. Com um manifesto escrito por Bartolomeu Campos de Queirós, em 2009, o movimento buscava transformar o Brasil em uma sociedade leitora, defendendo a literatura como um direito fundamental". E nada mais. Bartolomeu Campos de Queirós, faleceu três anos depois do manifesto, no dia 16 de janeiro de 2012, com 67 anos de idade, devido a complicações de uma insuficiência renal crônica. Tudo, então, saiu do ar, perdeu o ânimo, morreu junto. Não conheci Bartolomeu Campos de Queirós, pessoalmente. Uma pena. Dói saber que o perdi. Publicou mais de 40 livros, formou-se em Educação e Artes, cursou o Instituto de Pedagogia em Paris e participou de importantes projetos de leitura no Brasil, como o ProLer – Programa Nacional de Incentivo à Leitura, iniciativa criada em 1992, vinculada à Fundação Biblioteca Nacional, que visa promover o acesso e o hábito da leitura, formando mediadores e fortalecendo a cultura de leitura em todo o País. O ProLer – foi o que descobri na Internet – ainda existe, mas anda sumido do meio, perdeu força, infelizmente. Lembro do lançamento do ProLer. Na época estava na diretoria executiva da Câmara Brasileira do Livro. Bartolomeu recebeu os prêmios: Grande Prêmio da Crítica em Literatura Infantil/Juvenil pela APCA, Jabuti, FNLIJ e Academia Brasileira de Letras. Em 2008, foi entrevistado pelo Museu da Pessoa, como parte do projeto “Memórias da Literatura Infantil e Juvenil”, e expôs sua relação com as palavras: “A minha contínua busca por novas palavras foi o meu exercício de infância”. Confesso: seu depoimento mexeu comigo. Sou, desde a adolescência, um apaixonado pela descoberta de novas palavras. Tenho paixão por dicionários e os coleciono aos montes. Alguns, até repetidos. Sou exagerado! Pesquisando sobre formação de leitores e hábito de leitura, encontrei na Internet um pequeno texto do humanista Bartolomeu Campos de Queirós: “Ler é inteirar-se de outras proposições, é confrontar-se com outros destinos, é transformar-se a partir da experiência, vivenciada pelo outro e referendada pelo fruidor. Existe, pois, ação educativa maior do que esta de formar leitores?”. Texto incrível, diz tudo! Abri o bloco de notas e guardei a palavra "fruidor": quem ou o que frui de algo. Tem origem na palavra "fruir", mais o sufixo "dor". Dói saber que o perdi. Eu e as proposições do dia. Segue o manifesto do MBL, na integra: “O Movimento por um Brasil Literário manifesta sua intenção de concorrer para fazer do País uma sociedade leitora. Reconhecemos como princípio o direito de todos de participarem da produção também literária. No mundo atual, considera-se a alfabetização como um bem e um direito. Isto se deve ao fato de que com a industrialização as profissões exigem que o trabalhador saiba ler. No passado, os ofícios e ocupações eram transmitidos de pai para filho, sem interferência da escola. Alfabetizar-se, saber ler e escrever tornaram-se hoje condições imprescindíveis à profissionalização e ao emprego. A escola é um espaço necessário para instrumentalizar o sujeito e facilitar seu ingresso no trabalho. Mas pelo avanço das ciências humanas compreende-se como inerente aos homens e mulheres a necessidade de manifestar e dar corpo às suas capacidades inventivas. Por outro lado, existe um uso não tão pragmático de escrita e leitura. Numa época em que a oralidade perdeu, em parte, sua força, já não nos postamos diante de narrativas que falavam através da ficção de conteúdos sapienciais, éticos, imaginativos. É no mundo possível da ficção que o homem se encontra realmente livre para pensar, configurar alternativas, deixar agir a fantasia. Na literatura que, liberto do agir prático e da necessidade, o sujeito viaja por outro mundo possível. Sem preconceitos em sua construção, daí sua possibilidade intrínseca de inclusão, a literatura nos acolhe sem ignorar nossa incompletude. É o que a literatura oferece e abre a todo aquele que deseja entregar-se à fantasia. Democratiza-se assim o poder de criar, imaginar, recriar, romper o limite do provável. Sua fundação reflexiva possibilita ao leitor dobrar-se sobre si mesmo e estabelecer uma prosa entre o real e o idealizado. A leitura literária é um direito de todos e que ainda não está escrito. O sujeito anseia por conhecimentos e possui a necessidade de estender suas intuições criadoras aos espaços em que convive. Compreendendo a literatura como capaz de abrir um diálogo subjetivo entre o leitor e a obra, entre o vivido e o sonhado, entre o conhecido e o ainda por conhecer; considerando que este diálogo das diferenças, inerente à literatura, nos confirma como redes de relações; reconhecendo que a maleabilidade do pensamento concorre para a construção de novos desafios para a sociedade; afirmando que a literatura, pela sua configuração, acolhe a todos e concorre para o exercício de um pensamento crítico, ágil e inventivo; compreendendo que a metáfora literária abriga as experiências do leitor e não ignora suas singularidades. Outorgando a si mesmo o privilégio de idealizar outro cotidiano em liberdade, e movido pela intimidade maior de sua fantasia, um conhecimento mais amplo e diverso do mundo ganha corpo e se instala no desejo dos homens e mulheres promovendo os indivíduos a sujeitos e responsáveis pela sua própria humanidade. De consumidores passa-se a investidores na artesania do mundo. Por ser assim, persegue se uma sociedade em que a qualidade da existência humana é buscada como um bem inalienável. Liberdade, espontaneidade, afetividade e fantasia são elementos que fundam a infância. Tais substâncias são também pertinentes à construção literária. Daí, a literatura ser próxima da criança. Possibilitar aos mais jovens acesso ao texto literário é garantir a presença de tais elementos, que inauguram a vida, como essenciais para o seu crescimento. Nesse sentido é indispensável a presença da literatura em todos os espaços por onde circula a infância. Todas as atividades que têm a literatura como objeto central serão promovidas para fazer do País uma sociedade leitora. O apoio de todos que assim compreendem a função literária, a proposição é indispensável. Se é um projeto literário é também uma ação política por sonhar um País mais digno.” Texto lúcido, inteligente, inspirador. Tudo para dar certo e não deu, ainda. Tudo para fruir e mudar o Brasil que somos. Morre o líder, morre a ideia!? Nunca.
João Scortecci
O PERU “ADESTRADO” DO NATAL DE 1965
Na Fortaleza dos anos 1960, todo mundo - de um jeito ou de outro - se conhecia. Cidade pequena: pouco mais de 500 mil habitantes. Meu pai Luiz, engenheiro, conhecido e respeitado, funcionário do Grupo J. Macedo, carregava ainda, no sangue, o legado do seu pai, João Batista de Paula, alcunhado de “Batista da Light”. O golpe do peru de Natal do ano de 1965, pegou a todos: ninguém escapou. Um particularidade do golpe: Um único malandro e o seu peru adestrado! A ceia de Natal, naquela época, era planejada com até dois meses de antecedência. Era tradição ganharmos de presente para a ceia, perus, capotes (galinhas da angola), leitões e cabritos, para engorda. O quintal de casa era grande - meio quarteirão - e tinha bastante espaço para o confinamento. Apenas uma recomendação do meu pai Luiz: Nada de criar laços afetivos com a bicharada! Dizia, sempre. Desde criança aprendi a sacrificar e preparar perus, capotes (galinha da angola), leitões e cabritos. Ferramentas: faca afiada ou machadinha, cachaça e frieza. O segredo era o de sempre: primeiro embebedar o animal e depois fazer o serviço. Já vivi - uma única vez - problema sério com um leitão esperto, desconfiado da sorte, que me obrigou a beber junto. Foi uma tragédia: fiquei bêbado e errei o alvo! Ele continuou sóbrio - sorridente - e eu caí duro no chão. Cachaça danada! Um vizinho - empregado do meu tio Zanzão - teve de terminar o serviço. Acontece. Vamos, então, ao golpe do peru: Eram pouco mais das 8 horas da manhã, início de mês de novembro, papai já havia saído para o trabalho, quando a campainha do portão de casa tocou. “Quem será?”. Minha mãe Nilce, ainda de penhoar, atendeu. Era um moço - simpático e educado - carregando debaixo do braço um peru vivo. “D. Nilce, o patrão mandou entregar o peru para a ceia de Natal. Onde solto o bicho?”. Minha mãe, atrapalhada e confusa, indicou o caminho do quintal e pediu que eu fosse junto, mostrando o caminho. O moço limpou os pés no carpete da entrada, pediu licença e soltou o peru no quintal. “D. Nilce, o doutor pediu para eu levar o terno dele, completo, camisa branca, abotoaduras, gravata, meias pretas e o sapato social. Disse que tem um almoço importante, com o governador, no Clube Náutico. “Sim, claro.” Em segundos, mamãe Nilce juntou tudo e entregou a encomenda para o mensageiro, que subiu num jipe e foi embora. Trinta minutos depois - não mais que isso - a campainha tocou novamente. “Quem será desta vez?”. Era novamente o mensageiro. “D. Nilce, perdão. O patrão pediu que eu levasse de volta o peru e o trouxesse já sangrado!”. “Sim, claro, é melhor.”. “João, vai lá e ajuda o moço a pegar o peru.”. Eu fui. Estranho foi ver o peru, ao avistar o moço, correr feliz para os seus braços. “Adestrado?”, perguntei. Silêncio. O moço catou o peru, subiu no jipe e foi embora, para nunca mais voltar. Escafedeu-se! O golpe do peru adestrado - foi o que o delegado explicou - foi a golpe do ano em Fortaleza. Mais de quinze vítimas! No Natal do ano de 1965 não comemos peru desfiado. Mamãe Nilce fez pernil e macarronada, com molho de tomate. Vez por outra - com o coração avoado - penso no peru adestrado. Foram, apenas, 30 minutos de presença, não mais que isso. Papai Luiz tinha razão: nada de criar laços afetivos com o bicho. É um perigo: o coração voa e o tempo não perdoa.
João Scortecci
FILOMENO, O MUQUIRANA DO BAIRRO DA ALDEOTA
Filomeno, o amável, era um muquirana. Um pão-duro! Papai Luiz o chamava de “Filorento”. Guardava o seu dinheiro num baú de madeira, escondido debaixo da cama. A pobre de sua mulher, D. Mariazinha, passava apuros. Recebia mesada por semana, que mal dava para as despesas da casa. Tinha um único vestido - preto - que servia para tudo: missa, casamento, batizado e velório. O casal não teve filhos, e a fortuna do sovina era grande, de dar inveja. Filomeno era proprietário de uma fábrica de vassouras no Ceará e morava perto - duas quadras - da residência dos meus avós paternos, João Batista e Sarah, na Fortaleza dos anos 1960. Meu papai Luiz contava, sempre, duas de suas muitas histórias de pão-durice. A primeira era de quem lhe pedia emprego na fábrica de vassouras. Perguntava: Qual o seu nome? Resposta: José Pinto, Senhor. Segunda e última pergunta: O José Pinto sabe varrer o chão?. Resposta: “Sei, sim.”. Fim da entrevista. Está contratado. Aqui na minha fábrica - as melhores vassouras do Nordeste - quem não sabe varrer o chão não trabalha! Começa na segunda! Pergunta: Sr. Filomeno, quanto eu vou ganhar? Filomeno, mão-de-vaca, respondia: Vai ganhar meio salário e uma vassoura nova! Uma vassoura? Filomeno, o amável, era um homem justo, porém controlado: José, você vai varrer a fábrica, todos os dias, depois do expediente. Anote: Se quebrar a ferramenta, eu desconto do seu salário. Combinado? José Pinto, jovem e esperto, perguntou-lhe: Sr. Filomeno, até quando vou ter que varrer a fábrica, depois do expediente?. Resposta: Até o Natal! Sr. Filomeno, ainda estamos no mês de março!. Protestou. Eu sei. Meu jovem, experiência é tudo na vida!. José Pinto ficou no posto de “varredor” até a véspera de Natal, conforme o combinado. Passou o serviço no dia seguinte para o seu irmão caçula, o Francisco Pinto, recém-chegado da cidade de Itapipoca, interior do Ceará. José Pinto trabalhou na fábrica de vassouras durante 25 anos e chegou por mérito ao cargo de Gerente da Expedição. Mostrava com orgulho o pingente dourado de uma “vassourinha”, símbolo da campanha de Jânio Quadros à presidência da república, em 1960, representando sua promessa de "varrer" a corrupção e a imoralidade do Brasil, presente do Sr. Filomeno, o amável. “Filorento” - vez por outra - batia na porta da casa dos meus avós e pedia um favor. Um martelo, um pedaço de arame, uma xícara de açúcar, um lápis com ponta, agulha e linha, um remédio, coisas de pouco valor. Nada mais que isso. Até que um dia, espiou de longe, pelo vão da porta, uma tela da Santa Ceia, cópia da obra de Raffaelli, que ficava na parede da sala de jantar da casa. Meu avô Batista, percebendo o olho grande do vizinho muquirana, perguntou-lhe: “Gostou? É seu. Pode levar de presente!”. O Sr. Filomeno levou o quadro, prego e martelo. Dias depois, voltou para agradecer pelo presente e convidar meus avós, João Batista e Sarah, para jantarem em sua casa. Mesmo surpresos e desconfiados, aceitaram o convite. Curiosidade mata! Foram servidos: sopa de chuchu, moela de frango com arroz branco, duas batatas cozidas e dois ovos estrelados, tudo na conta de Raffaelli. Filomeno, o amável, levantou-se, e, de pé, com o garfo, dividiu as batatas e os ovos, em quatro pedaços iguais. Beberam Ki-Suco de laranja e, de sobremesa, comeram manjar de coco, sem ameixas. Filomeno, o amável, morreu no final dos anos 1970, um ano depois do falecimento de sua esposa Mariazinha. Sua fortuna - é o que dizem - ficou com um sobrinho distante, que fechou a fábrica de vassouras e foi ser “rabo-de-burro” na cidade do Rio de Janeiro. Experiência é tudo na vida!
João Scortecci
GASTROMANO E A VOZ DO ALÉM-TÚMULO
O texto é tétrico. Perdoem-me. Tudo - mais ou menos – verdade! Gastromano era um sujeito estranho, do além-túmulo e engraçado. Uma figura! Adorava velórios. Não perdia um, isso na cidade de Fortaleza, dos anos 1960. Tudo com ele começava ou terminava na boca de um caixão de oito alças. Suas histórias eram hilárias: morto que acordou no meio do velório, fraudes, brigas, trapaças, desmaios e sabotagens. Estranhamente: não gostava de sangue! Conhecemo-nos no velório de uma idosa, mais de 80 anos de idade, que morava do outro lado da rua, na Av. D. Manuel, inquilina das muitas casinhas de propriedade da família Gurgel. Porta aberta, é o que manda a lei. Entrei, então, de curioso. Meu primeiro velório. Inesquecível. A falecida - coberta de flores - descansava no caixão, posto na mesa da sala de jantar da casa, com a cabeça amarrada e algodão enfiado nas narinas. Era praxe! Na sala: Eu e minha prima, dois anos mais velha. E, do nada, o penetra do Gastromano, na época, adolescente. Gastromano, foi até o caixão e com um palito de picolé, removeu os chumaços de algodão das narinas da idosa. Perguntei: O que você está fazendo? Minha prima também protestou: Isso é um desrespeito! Não! gritou. Gastromano sorriu e terminou o serviço. Removeu os chumaços de algodão. Disse-nos: Vejam o que vai acontecer! Não demorou muito. Das narinas da morta começaram a sair lombrigas. Deus do céu! Tapa logo isso. Pedi. No mesmo instante – no silêncio da sala – ouvimos vozes: “Tirem a moeda da minha boca!”. Perguntei: Quem está falando? Silêncio. Minha prima fugiu da sala, aos gritos. Eu fiquei, assustado. A voz, então, voltou: “Tirem a moeda da minha boca!”. Eu não! Tira você! Afastei-me do caixão e encarei o Gastromano. Ele riu, levemente. Notei que respirava pela boca e mexia os lábios. Estranhei. Demorei alguns segundos, para, então, descobrir tratar-se de uma farsa, uma brincadeira estúpida, do bandido do Gastromano. Enganou-me, fazendo parecer que a voz vinha do além. Caiu, então, na gargalhada. Perguntou-me: O que achou da minha apresentação? Sou ventríloquo! Justificou-se. Perguntei, então: O que é isso? Um artista que fala com o ventre, sem mexer os lábios, dando a impressão de que a voz vem de outro lugar. Os gregos antigos chamavam essa arte de ‘gastromancia’, e estava associada às práticas divinatórias da necromancia, usada para parecer que o espírito do morto estava presente para dar informações de além-túmulo. Desconhecia! Mesmo assim, não o perdoei. Fomos embora do cenário tétrico, de lombrigas e vozes do além. Minha prima desapareceu. Quanto ao ventríloquo do Gastromano, escafedeu-se! Jurei – e cumpro até hoje – ajudar, sempre, nos preparativos dos rituais fúnebres de amigos e próximos. Já fiz de tudo: vesti mortos, ajustei corpos em caixões, fiz discursos, declamei poemas e carreguei mais de uma dezena de caixões até a sepultura. Não tenho medo de alma penada. Minha avó Sarah dizia sempre: "Filho, não tenha medo dos mortos. Tenha medo dos vivos!"
João Scortecci
GRITO DE FÚRIA E IDEIA DE JIRICO, COM “J”
Conheço a escritora e fonoaudióloga Leny Kyrillos. Já esteve presente em vários eventos da Abigraf, palestrando e lançando livros. Quem nos apresentou foi o jornalista e radialista Milton Yung, âncora do Jornal da CBN. Kyrillos, profissional brilhante, quando fala, eu escuto, levanto as orelhas. Aprendo muito! Hoje – ainda sonolento – depois de ouvir o professor Pasquale Cipro Neto, no programa “A nossa língua de todo dia”, explicar sobre a expressão “Jirico” com “J”, ela, Kyrillos, assustou-me, comentando sobre os “perigosos” benefícios da Terapia do Grito, em que se usa o grito para liberar emoções reprimidas, traumas e estresse acumulado. Que doideira! Fui ao banheiro, bebi água e, na volta, abri a janela e gritei! Berrei! Higienópolis inteira, deve ter escutado o meu grito. Fiquei louco?, pensei. O interfone tocou em seguida. Era o porteiro da noite. “Sr João, aconteceu alguma coisa?, perguntou-me, assustado. "Nada", respondi. Perdi o sono. Liguei o computador e fui pesquisar sobre a Terapia do Grito, trabalho do psicólogo e psicoterapeuta Arthur Janov (1924 – 2017) e os benefícios nada científicos da sua teoria, para libertar dores emocionais profundas, traumas e estresse acumulado. Na matéria, vários alertas sobre o perigo do grito terapêutico e também sobre os possíveis efeitos negativos. Ideia de jirico, com “J”, a minha. A própria Kyrillos, na sua reportagem, tocou no assunto, recomendando o grito com moderação e com orientação profissional adequada. Pergunto-me: e agora? Já gritei. Berrei. Impossível trazê-lo de volta. Escafedeu-se no ar. Não satisfeito – pesquisando e lendo sobre a Teoria do Grito do psicólogo e psicoterapeuta Arthur Janov – acabei no assunto “cordas vocais”. Explicação: “são dobras musculares na laringe que vibram com a passagem do ar dos pulmões para produzir som, fechando-se para a fonação e abrindo-se para a respiração, além de protegerem as vias aéreas. Funcionam como as cordas de um instrumento: esticam para notas agudas e relaxam para graves, sendo essenciais para o timbre e volume da voz”. E – eu não sabia – as cordas vocais são brancas e quando provocadas mudam de cor, para um tom de rosa, cor intermediária entre o magenta e o vermelho. Repito: ideia de jirico, com "J". Amanhã – véspera de Natal – compro um panettone gigante e levo de presente para o porteiro da noite. Ele pedala, tem bike e é torcedor fanático do Palmeiras. Vai me perdoar do susto. Pretendo, ainda, justificar-me, dizendo: “Zé, que tal o meu grito de jirico, com 'J'?”. Estou praticando silêncio vocal, algo assim.
ABDUZIDO POR UM DISCO VOADOR
Eu e os ETs. Pergunta: "Vocês virão?". A dúvida mexe com a minha imaginação de criança. Ela viaja no futuro, um encontro, talvez, ou um dia qualquer, no amanhã. Tomara! Quando criança – isso no Ceará dos anos 1960 – esperava Papai Noel chegar, descer pela chaminé, numa casa que nem chaminé tinha. Infância de aniversários, natais, desfiar e comer peru, viagens longas, passeios, encontros, reformas na casa, festas juninas, acampamentos de escoteiros, carnavais de rua, presentes, danações, amigos de escola, cadernos e livros novos e férias intermináveis, nas areias do mar de Aquiraz. Esperava! Nós, crianças, estamos sempre esperando algo! Somos feitos de sonhos, fantasias e ilusões! "Vocês virão?". Tomara que sim. Não gosto de três coisas na vida: surpresas, sustos e demoras! Outro dia, na TV, assisti à matéria sobre os 57 anos de publicação do livro “Eram os deuses astronautas?” (1968), do escritor e arqueólogo suíço Erich von Däniken. O livro marcou minha adolescência. Mexeu com as minhas raízes. Li o livro no ano de 1973, edição publicada pela Companhia Melhoramentos. Devo ter ainda o exemplar guardado em algum lugar. Pretendo, depois, revisitá-lo. Antes que me perguntem se já vi objetos voadores não identificados, eu respondo: "Sim!". Foi na cidade de Fortaleza, no final dos anos 1960. Eu e a galera da rua D. Manoel, onde eu morava até 1972. Cinco objetos, juntos, no sol do meio-dia. Foi incrível. Aviões da FAB na cola, perseguição maluca, sem sucesso. A notícia saiu nas rádios e, à noite, no noticiário da TV. Voltando à reportagem sobre o Erich von Däniken, veio-me, novamente, a pergunta de uma vida inteira: "Vocês virão?". Gostaria de ser abduzido, raptado, interrogado, até torturado e, mais do que tudo: não devolvido. Juro! Em 1982, já morando na cidade de São Paulo, foi a vez do filme "E.T., o Extraterrestre", produzido e dirigido por Steven Spielberg. Inesquecível. O filme faz parte da lista dos 10 melhores de todos os tempos. Pergunta: "Vocês virão?" Digo sempre: olha-se pouco para o céu! Gosto da energia, da força, do significado do verbo "abduzir" no meu coração. Amanhã, véspera de Natal, desfiar e comer peru. Viver e morrer!
DOIDO, DOIDO MESMO E O VELÓRIO DO CHICO SALAME
Sozinho no velório do Chico Salame. Amigo do bairro, taxista. Vez por outra, batíamos papo. Até procurei alguém conhecido, sem sucesso. Somente a viúva, de nome Teresa, desmaiada, chorando aos gritos no canto da sala. Junto, colado no caixão, um sujeito estranho, magro, quarenta e poucos anos, perdido, olhando para o teto. Perguntei-lhe: Você é parente do Chico Salame? Silêncio. Não respondeu. Continuou olhando fixo para o teto. Decidi, então, chegar junto: Qual o seu nome? Insisti. Fui direto, no fígado. O sujeito me olhou e sussurrou: Eu sou o doido, doido mesmo. Prazer, respondi. E você? Quis saber. Respondi, de pronto: O louco, muito louco. Ele sorriu. Disse-lhe, então: Sou o poeta louco, imperativo, inquieto, cheio de manias, muitas e que gosta de cometer versos! O doido, muito doido, fungou um catarro, cuspiu longe e resfolegou: Eu também, eu também! Ficamos ali, inertes, pensativos, aguardando o corpo do Chico Salame ser cremado no cemitério da Vila Alpina. O caixão baixou – escutamos as mesmas músicas chatas de sempre - e o povo, ligeirinho, foi embora. Escafedeu-se. Ficou a viúva, o irmão caçula do Chico, Eu e o Doido. Disse-me: Eu adoro funerais! Eu também, respondi. Perguntou-me, então: Você conhecia o gordinho? Sim, meu amigo. Respondi. Eu não! Respondeu-me. O doido, doido mesmo, resmungou: As pessoas são estranhas! Justificou-se. Concordei. Chico Salame era um gordo feliz. Querido por todos. Morreu no volante do carro. Dizem – não sei se é verdade – que deu trabalho para tirá-lo do carro. Mais de 140 quilos. Chico Salame foi o único gordo, que conheci, que tinha o pinto grande. Isso explica o apelido: chico Salame. Sua alegria: mostrá-lo! O doido, doido mesmo, então, devolveu-me a pergunta: É quem é você? Disse-lhe: Eu sou o louco, muito louco, que gosta de cometer poesias. Ele sorriu. Disse-me: Eu queria ser como você! Confessou-me. “Louco, louco mesmo? Não! Poeta, escrever um livro de poesias. Lembrei-me, então, da letra da música “Vaca Profana”, do Caetano Veloso: “Mas eu também sei ser careta / De perto, ninguém é normal / Às vezes, segue em linha reta / A vida que é meu bem, meu mal.” Perguntei-lhe, então, com caretice: “O que você está fazendo aqui no enterro do Chico Salame? O doido, doido mesmo, justificou-se: Esperando você! Silêncio. Foi a minha vez de cuspir longe, abraçar forte a Tereza, mulher do Chico Salame e ir embora. Antes, porém, digitei no celular do doido, doido mesmo, o número do meu celular. No início do ano ele, o doido, doido mesmo, trouxe-me um livro de poesias para publicar e lançar na bienal do livro. Oi louco!", gritou. Oi doido, respondi. Nos abraçamos, forte. Pediu-me, então, um agrado literário. Resmungou: Você escreve o prefácio do meu livro? Foi o que fiz. Doideira!
João Scortecci
DEPÓSITO LEGAL: PRESERVAÇÃO E FORMAÇÃO DA COLEÇÃO MEMÓRIA NACIONAL
Foi o advogado mineiro Affonso Penna (Affonso Augusto Moreira Penna, 1847 – 1909), quando no cargo de Presidente da República, de 15 de novembro de 1906 a 14 de junho de 1909, quem assinou o Decreto nº 1.825, de 20/12/1907, que dispõe sobre a remessa de obras impressas à Biblioteca Nacional do Brasil. Affonso Penna morreu em 1909, antes do término do mandato, e foi sucedido por Nilo Peçanha. O Decreto nº 1.825, publicado no Diário Oficial da União, em 22/12/1907, página 9.148, da Coleção de Leis do Brasil, batizado de “Depósito Legal”, dispõe sobre o envio à Biblioteca Nacional de um exemplar de todas as publicações produzidas em território nacional, acrescentando-se “por qualquer meio ou processo”, segundo a Lei nº 10.994, de 14/12/2004, que revoga o Decreto nº 1.825, de 1907.
Relendo o Decreto nº 1.825, de 1907, encontrei algumas curiosidades: “Os administradores de oficinas de typographia, lithographia, photographia ou gravura, situadas no Distrito Federal e nos Estados, são obrigados a remeter a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, um exemplar de cada obra que executarem”. Na época, não existia oficialmente a figura do editor, hoje responsável pela remessa prevista no decreto. No parágrafo IV, lê-se: “Quando nos objetos não estiver declarada a sua significação o seu preço de renda (preço de capa) e o número de exemplares de que a edição constar (quantidade de exemplares impressos por edição), todas essas indicações deverão acompanhar por ocasião de sua remessa”. E – pasmem, eu não sabia – no Artigo 4º, lê-se: “Os objetos remetidos a Biblioteca Nacional, em observância a esta lei, transitarão pelos Correios da República com isenção de franquia e gratuidade de registro”. E, por fim, não menos interessante, no Artigo. 5º, lê-se: “A Biblioteca Nacional publicará regularmente um boletim bibliográfico que terá por fim principal registrar as aquisições efetuadas em virtude desta lei”. No Artigo 2º da Lei nº 10.994, de 14/12/2004, assinada pelo então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, aparecem as figuras do editor, pessoa física ou jurídica que adquire o direito de reprodução gráfica da obra, e do impressor, pessoa física ou jurídica que imprime obras, por meios mecânicos, utilizando suportes vários. O Artigo 5º – confuso e que já deu muito pano para manga – atribui erroneamente aos “impressores” a obrigatoriedade do Depósito Legal. O termo “impressor” se refere, de fato, ao editor, aquele responsável legal pela edição da obra e pelo direito de autor, que contrata uma oficina gráfica para executar o serviço de impressão. Para simplificar o entendimento, basta observar a edição de um livro eletrônico – e-book –, em que não existe a figura do gráfico/impressor. Fica claro, então, o entendimento sobre a quem cabe a obrigatoriedade. No parágrafo II do Artigo 5º, pode-se observar, também, o mesmo raciocínio: quem é o proprietário da edição, responsável pela comercialização dos livros no mercado? É o editor, não o impressor gráfico, que é um prestador de serviço. E, por fim, no texto da Lei nº 10.994, de 14/12/2004, desapareceu o Artigo 4º da Lei 1.825, de 1907, em que se lia: “Os objetos remetidos a Biblioteca Nacional, em observância a esta lei, transitarão pelos Correios da República com isenção de franquia e gratuidade de registro”. Vale o escrito ou “dar um perdido”, gíria que significa desaparecer ou se esquivar de algo ou de um compromisso, sem dar explicações, prática comum, hoje, dos Correios da República. O serviço de “isenção de franquia e gratuidade de registro”, mesmo insignificante economicamente, mostra o quanto o livro anda esquecido, desprestigiado e politicamente “abandonado”.
Não nos esqueçamos, nunca, da importância do livro, como fonte exponencial de conhecimento e cultura, ferramenta simples, eficiente, insubstituível e democrática. O Depósito Legal – importantíssimo – tem o objetivo de assegurar a coleta, a guarda e a difusão da produção intelectual brasileira, visando à preservação e à formação da Coleção Memória Nacional. Aqui cabe a máxima: "Um povo sem memória é um povo sem história".
João Scortecci
DUDU, O CACHORRO DO HOMEM
O primatologista inglês Richard Wrangham (1948 - ), autor do livro “O Paradoxo da bondade” (“The Goodness Paradox”), afirma que nós humanos temos traços de bicho doméstico e que características de humanos modernos lembram as de animais como os cachorros. Dudu - meu fiel-canis-fox-alviverde - me encara, enquanto leio o artigo e - tento - escrever algo sobre os lobos: nossos irmãos! Wrangham, no seu livro, traça um capitulo inteiro sobre a evolução da bondade e da maldade humana, através da autodomesticação: processo evolutivo pelo qual uma espécie, ao longo do tempo, se torna domesticada. Anotei. E o que isso significa ao pé da letra? Wrangham, no resumo da obra, responde: “Sobrevivemos e evoluímos como espécie através da autodomesticação. Um - amansamento - natural, explica. Amansamento? Eu já desconfiava. Dudu, meu irmão primata, já impaciente, levanta suas orelhas aos céus e me encara, de vez. Orelhas levantadas - é o que dizem - sinal de agressividade. Desconfio. Deve ser fome. Dudu, responde, mostrando os dentes. Preparo, então, nosso café da manhã. Ele come. Na verdade: engole! Pergunto-lhe – coçando-lhe a barriga cheia – estufada com ovos, queijo ralado, creme de leite, tomatinho fresco e pão de milho: quer brincar? Ele aceita, feliz. Jogo a bolinha. Ele corre, pega a bolinha e traz de volta. Repito a dose mais cinco vezes. Resmungo: “Dudu, chega!” Brincadeira sem-fim. Estado de amansadura? Aqui com as minhas pulgas: seria um caso clássico de comportamento de autoadestramento? Ou, ainda, talvez, estado avançado de amansamento natural? Wrangham, deliberadamente, justifica-se: “Você está apresentando traços de bicho doméstico!”. Silêncio canino. Levanto, então, as orelhas e mostro os dentes. Dudu, irmão primata, me ignora, de tudo. Sinto-me cachorro do homem, ou, provavelmente, homem cachorro. Pergunta: Devo treinar um latido próprio, somente meu? Olho para a bolinha e a ignoro. Hoje não quero brincar de leva e traz. O primatologista Wrangham mexeu com a minha raça, com o meu ego de primata alfa. Estou “amansado” literalmente.
João Scortecci
LIVROS RESTANTES DE DENISE FRAGA
O assunto despertou-me. Eram pouco mais das 4 da manhã. Veio da rádio BandNews, logo após a reprise do “O é da Coisa”, do Reinaldo Azevedo. A atriz, produtora e cronista Denise Fraga - não a conheço pessoalmente - falando sobre o seu novo filme "Livros Restantes", dirigido pela roteirista Márcia Paraíso. O filme conta a história de uma mulher "madura" de nome Ana Catarina (papel vivido pela atriz) que, diante da necessidade de se mudar de endereço, redescobre a si mesma, ao reencontrar pessoas do passado, para devolver livros com dedicatórias, anotações particulares, rabiscos pessoais, traços de rodapés, do que foi sua vida, até então. Interessante! Anotei o assunto e dormi novamente. Dois assuntos para escrever: sobre um blog de um amigo onde nele se pode polemizar – liberar a fúria do capeta - sobre tudo que é “espinhoso” e "politicamente incorreto". Na lista de possibilidades, os temas: Política, economia, religião, sociologia, meio ambiente e idiossincrasias. Idiossincrasias? Fui ver: maneiras de ser, particulares de um indivíduo ou de um grupo. Também interessante! Respondi, primeiro, a mensagem do amigo. Disse-lhe: “Você é corajoso e louco!” Ele ainda não me respondeu. Talvez diga: “Muito louco!” Algo assim. Optei, então, em escrever sobre o filme estrelado pela atriz Denise Fraga, ou melhor, sobre o assunto tratado no mesmo: Livros restantes! Ainda jovem - anos 1990, talvez - andei visitando sebos e comprando livros com dedicatórias, anotações de páginas, notas de rodapé. Lembro que até montei um arquivo. Dedicatórias de amor, respeito, secretas, vingativas, indiferentes, infiéis e doentias. Vinte e poucos títulos. Tinha de tudo. Um detalhe, insignificante: letras bonitas, legíveis. Quanta inveja! Já presenciei - foi na Livraria Cultura do Conjunto Nacional onde hoje funciona a Drummond Livraria – um homem atirar o livro na cara do autor porque não gostou da dedicatória, algo assim. Bateu perna e foi embora aos gritos! Tentei - rapidamente - pegar o livro do chão, sem sucesso. O autor, um poeta professor de direito da faculdade do Largo São Francisco, o guardou de pronto, sentando em cima do livro, literalmente. Pensei: Dedicatória de desafeto! Acontece. Lendo a sinopse do filme: “A protagonista, Ana Catarina, decide devolver livros antigos com dedicatórias para pessoas que marcaram sua vida, usando esses objetos como uma bússola para reorganizar sua própria existência após os 50 anos, em uma busca por novos sentidos”. Gelei. Hoje, na casa dos 70 anos – confesso – já me desfiz dos livros indiferentes, chatos, ruins, ingratos, covardes e inúteis. Foram enviados para doação e alguns, poucos, para o lixo. Antes, cabreiro e zeloso, tratei de arrancar as páginas com dedicatórias. Guardei no memorial - apenas - os livros especiais, do coração, aqueles com traços e linhas de rodapé. Adoro - é um aviso - os "aloegos" escritos nos rodapés dos livros, fora da mancha, nas curvas do tempo, no curto espaço dos livros restantes e únicos. Eternos, talvez.
João Scortecci
"CASA DA ENY”, O PROSTÍBULO DE ENY CEZARINO
Eny Cezarino foi uma famosa proxeneta! Uma cafetina! Em Portugal seria uma “chula” e no Japão e em alguns países orientais, “Madame”. Meu amigo Ézio Grassi Peluso, já falecido, dicionarista e professor de português, dizia sempre: “As palavras até podem ter o mesmo significado, mas nunca o mesmo sentido!”. Verdade! Conheci a Madame Eny Cezarino (1917 – 1987), no início dos anos 1980, dona da famosa Casa da Eny, na cidade de Bauru, interior do estado de São Paulo. O prostíbulo, na época, já estava desativado e sobrevivia, ainda, para poucos: velhos conhecidos, convidados e curiosos. Fui como editor de livros, a convite de um amigo da região, escritor, memorialista, interessado em escrever a biografia de Eny Cezarino e a história do Eny’s Bar. A cafetina nos aguardava, elegante e sorridente. Uma mulher com os seus 60 anos de idade, bonita, elegante e sensual. Eny nos recebeu na varanda do casarão, próxima à porta do salão principal, que dava acesso ao que foi, no passado, o Eny’s Bar, um “paredão” com centenas de garrafas, formando, ao fundo, um painel multicolorido. Algo bonito de se ver! Espaço visivelmente decadente, escuro, mas ainda imponente. A conversa fluiu. Eny sabia agradar e trocar olhares cativantes. Contamos causos e piadas. Encenei algumas do repertório do meu avô paterno, João Batista de Paula, o Batista da Light. A maioria sobre prostitutas e políticos. Tarde longa, deliciosa, inesquecível. Rimos muito. Conversamos também – como era o combinado – sobre a edição do livro: sua biografia. Eny estava falida e precisava de dinheiro. Foi o que nos confessou, abertamente, sem nenhum constrangimento. “O que você pode fazer por mim?”, perguntou-me. Disse-lhe: “10% sobre o preço de capa dos exemplares vendidos”. E expliquei como seria a edição do livro. Ela queria também fazer um filme. Mil planos. Pediu um adiantamento, e eu prometi, delicadamente, pensar no assunto. O livro seria escrito pelo amigo memorialista e eu pagaria as despesas do projeto. “Eny, você vai falar tudo?”, perguntei-lhe. “Vou, eu juro!”, afirmou. Recusei uísque, mas aceitei um suco de tomate. O calor era infernal. Ela me levou, então, para conhecer o casarão, com seus 40 quartos, sauna, restaurante, bar e salões de festas. No final da tarde, quase ao pôr do sol, para espantar o calor e, depois, voltar dirigindo para São Paulo, mergulhei na piscina do prostíbulo, que ficava defronte da varanda, na entrada da casa. Não havia levado roupa de banho. Tirei, então, a roupa e nadei nu. O livro, infelizmente, não saiu. Eny fugiu de casa, ainda adolescente, e passou a trabalhar como prostituta em cidades como São Paulo, Porto Alegre e Paranaguá. Na década de 1940, passou a trabalhar na Pensão Imperial, em Bauru, prostíbulo que mais tarde comprou e gerenciou. Na década de 1950, abriu o Eny’s Bar e o transformou num dos prostíbulos mais famosos do Brasil, atraindo celebridades, milionários, políticos e presidentes. Eny nasceu no bairro da Aclimação, em São Paulo, em 23 de abril de 1917. Era filha do italiano José Cesarino e da francesa Angelina Bassotti Cesarino. Não teve filhos e apenas um amor, chamado Maurício, de origem libanesa, que trabalhava com venda de tecido e faleceu em um acidente de carro. Em 1983, atolada em dívidas, acabou perdendo o bar. Morreu pobre, na cidade de São Paulo, no dia 24 de agosto de 1987, aos 70 anos de idade. Esse foi, entre muitos, o livro que eu gostaria de ter publicado. Madame Eny Cezarino ficou inteira dentro de mim.
João Scortecci
GAUDÍ E O SUSPENSE DA "CIDADE DE SOMBRAS"
A obra do arquiteto catalão Gaudí (Antoni Gaudí i Cornet, 1852-1926) é de tirar o fôlego. Impressiona. Diferente de tudo que já vi. Expoente do Modernismo, famoso por suas obras “orgânicas", de estilo único, na cidade de Barcelona. Usava formas de árvores, rochas, animais e o mar como base para suas criações. Religioso, via a arquitetura como um louvor a Deus. Suas obras mais famosas: Parque Güell, um parque de "contos de fadas" com formas onduladas e coloridas; Casa Batlló, famosa pela fachada que lembra escamas de peixe; La Pedrera (Casa Milà), edifício com aspecto de pedra e formas fluida; Casa Vicens, moradia de verão encomendada pelo dono de uma fábrica de tijolos e fabricante de azulejos; Palácio Güell, construído entre 1885 e 1890, para servir de residência da família de Eusebi Güell; e a Sagrada Família, sua obra-prima, templo icônico, inacabado. Conheço pouco de arquitetura, mesmo tenho conhecido grandes arquitetos, entre eles Oscar Niemeyer. No Netflix assisti à série "Cidade de Sombras", suspense policial espanhol ambientado na cidade de Barcelona, após os Jogos Olímpicos, quando a cidade foi “literalmente” reconstruída. A série, dirigida por Jorge Torregrossa, é baseada no livro "El verdugo de Gaudí", de Aro Sáinz de la Maza, que faz parte de uma série literária protagonizada pelo investigador Milo Malart, interpretado por Isak Férriz, e Rebeca Garrido, interpretada pela atriz espanhola Verónica Echegui, falecida em agosto de 2025, de câncer, aos 42 anos de idade. Para quem quer curtir uma ótima série espanhola e conhecer a obra do arquiteto catalão Gaudí, eu recomendo. Imperdível. Ficou no ar – desconfio – o assunto "esquizofrenia", doença que assola a família do investigador Milo Malart. Já disse: conheço muito pouco sobre arquitetura e a obra e Gaudí. Devo estar sonhando, delirando, injuriando o mestre. Perdão! Quando vi na série imagens da Casa Batlló, lembrei-me de uma autora esquizofrênica, já falecida, que um dia me confessou: "Quando sinto que vou entrar em crise, vejo as pessoas, as árvores, os prédios distorcidos, deformados, puídos. Saio do ar!". Perguntei, então: "E a poesia?". Ela me olhou e disse: "Vem depois da crise, dos gritos, ela me acalma a alma!". Gaudí faleceu em 1926, aos 74 anos de idade, após ser atropelado por um bonde e seu corpo está enterrado na cripta da Sagrada Família, em Barcelona.
João Scortecci
NOSTRADAMUS E AS ROSAS DE MACHADO DE ASSIS
"As Centúrias", de Nostradamus. Profecias compiladas em dez conjuntos de versos, cada um com 100 quadras que totalizam 1000 previsões. Não seguem coerência cronológica e foram escritas combinando francês arcaico, grego, latim e provençal, uma das variedades da língua occitana falada na Provença e na metade oriental do Gard, no sudeste francês. Um livro de 100 páginas. Nostradamus (Michel de Nostredame, 1503 – 1566), astrólogo, médico e vidente, sofria de epilepsia psíquica, de gota e de insuficiência cardíaca. A obra "As Centúrias" (parte I, ano 1555), foi publicada pela casa Macé Bonhomme, de Lyon. A parte II, apenas em 1557. A parte III (de origem duvidosa), somente após a sua morte, em 1566. Nostradamus foi o criador da “pílula de rosas” que supostamente protegia as pessoas da peste negra. As pílulas, feitas de botões de rosa, eram ricas em vitamina C e ajudavam a aumentar a imunidade das pessoas. Poeta apotecário! Nostradamus vai e volta na vida com ela é, sempre que algo “trágico” acontece. Tenho um amigo poeta – querido e assustado – que vez por outra me liga e diz: “Nostradamus previu!”. Respondo, sempre: “Verdade!”. Ontem ele me ligou e disse: “Vou te copiar uma profecia do vidente!”. Enviou. Segue: “Quando as liteiras (cadeiras portáteis, com varas laterais, usadas como meio de transporte) virarem em turbilhão / e os rostos se cobrirem com mantos / a nova república terá problemas pelo seu povo: / Aí brancos e vermelhos governarão erroneamente.”. A profecia faz parte do livro “As Centúrias” e está associada – é o que dizem – à Revolução Francesa (1789 - 1799). Desliguei o rádio e fui dormir no sofá da sala. Confesso: nunca andei de liteira. Já entrei numa e achei tudo muito estranho. Pequena e de assento duro. Dormi assustado, ferido, incerto. Sonhei que era o animal que amparava a carga. Não vi quem era o peso, o turbilhão, quem me surrava o suor e sugava o meu sangue ácido. Epilepsia psíquica? Talvez. Levantei-me e engoli um botão de rosas do meu jardim: “De pouco vale; é o diadema da ilusão!”, do poema “As rosas”, de Machado de Assis. E, então, os rostos se cobriram com mantos e silêncios. Amanheci com gota e dor. Deveria ter sido na vida um apotecário, nunca um poeta hipocondríaco.
REVISTA ABIGRAF: BELEZA, TALENTO E NATUREZA
Eu o conheço de longa data. Aqui confesso: agora, somente nos últimos três anos, aproximamo-nos. Eu, na correria de sempre: aqui e acolá, equilibrando pratinhos, e ele, reservado, tímido, talentoso, cuidando da vida plural de design gráfico. Fazia tempo que estava querendo escrever sobre o seu talentoso trabalho. Quando vi a capa da “Revista Abigraf”, número 325, edição comemorativa dos seus 50 anos (1975 – 2025) ininterruptos, sentenciei-me: “É agora!”. A capa – belíssima – é criação do design e publicitário Cesar Mangiacavalli, paulistano, nascido no ano de 1958, formado em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado e que, desde 1988, a convite do editor Plínio Gramani, trabalha como editor de arte da “Revista Abigraf”. Aos 16 anos de idade, atuou como publicitário assistente de estúdio na agência de propaganda Cosi, Jarbas, Sergino e, depois, como chefe de estúdio na Jarbas Propaganda e assistente de criação na GGK São Paulo e Ênio, Associados. Foi, também, diretor de arte nas agências Castelo Branco e Associados (CBBA); Central de Criação; Link; Clemente & Associados; Cine-A; Propeg São Paulo, Salvador e Brasília; e diretor de criação da Midialog, uma das primeiras agências de mídia digital do País. Desde o ano de 1999 é jurado do Prêmio de Excelência Gráfica Fernando Pini, da Abigraf – Associação Brasileira da Indústria Gráfica. Ao longo de sua incrível história, a “Revista Abigraf”, ganhou os prêmios nacionais e internacionais: Comtexto de Comunicação Empresarial, de 1989 e 1990; Aberje, de 1993, 1994, 1995, 1996 e 1998, da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial; Benny e Certificate of Merit, de 1998, e Award of Recognition, de 2000 e 2001, da Printing Industries of America; Anatec Ouro e Prata de 2006, da Associação Nacional de Editores de Publicações Técnicas; e, com o jornalista Ricardo Viveiros, o Prêmio Antônio Bento de 2011, da Associação Brasileira de Críticos de Arte – ABCA. Cesar Mangiacavalli, para surpresa de muitos, também é escritor, desde a sua adolescência. Recentemente, publicou pela Scortecci Editora, os livros “Os estranhos contos do Sr. Max” (2024) e “Outros contos do Sr. Max” (2025). Sobre sua obra literária, escreveu: “Na vastidão do cosmos, onde a Lua, os planetas e as estrelas dançam em harmonia, existe um lar magnífico: a Terra. Ela existe há muito tempo, antes mesmo de nossa percepção do ser e do estar. Quando vista do espaço, a Terra é azul, como uma joia celestial. Essa suposição, que só foi confirmada em abril de 1961, nos lembra de nossa pequenez diante da imensidão do Universo. No lado escuro da Terra, onde as luzes das cidades desenham constelações artificiais, a humanidade dorme e sonha. Eu? Sou o escriba dos tempos imemoriais. Escuto e escrevo cada acentuação mal aplicada, cada vírgula equivocada. Sou como o Verbo lapidado à luz do conhecimento. A Terra e a humanidade são minha luz no firmamento. Meu propósito é carregar o fardo da verdade, desvendar estigmas e erros, oferecer uma justa compreensão. Porém, meu nome deverá permanecer oculto até que possa cumprir meu trabalho, uma tarefa quase infinita. Pela eternidade já o fiz; pela humanidade sempre o farei. No limiar de um novo tempo e no fim proclamado, eu existo como a luz que guia para uma eternidade renovada, um eclipse em meio à escuridão da verdade negligenciada. Não sou a mensagem, tampouco o mensageiro. Mas, assim como a Lua, os planetas, o Sol e outras estrelas, eu apenas existo.” Sobre o seu trabalho de design, com propriedade e experiência, com a sensibilidade de um contista, que narra o seu tempo, a sua vida, os seus encontros, Cesar Mangiacavalli assim nos ensina: “Quem tem uma longa experiência em criação gráfica, pode chegar a um conceito bem simples, que é o de buscar sempre o melhor. Às vezes, o melhor pode ser o mais arrojado. Outras, o mais equilibrado, ou o que transmite maior segurança. O que importa é a nossa postura. Essa atitude reflete na qualidade do trabalho, principalmente quando gostamos do que fazemos. Eu, como profissional de criação, tenho orgulho do que produzimos até hoje, do que isso representa para a valorização do nosso trabalho.”. O amor de Mangiacavalli pela “Revista Abigraf”, pelo seu trabalho, talento e dedicação, é mágico. Contamina olhos e corações. Fiquei horas navegando nos labirintos da arte da capa. Cada curva, um ângulo de possibilidades e caminhos. Cada traço – infinito e sensível – uma luz imortal. E as cores? Equilibradas, lúcidas, infinitas... Depois, desavisado de tudo, abri e li a revista inteira. Faço isso sempre. Parabéns, César Mangiacavalli, Plínio Sobrenone, Tânia Galluzzi, equipe, colaboradores e patrocinadores. Um detalhe, insignificante, talvez: a revista tem cheiro bom. Natureza de papel, tinta, suor e trabalho. Essências de Gutenberg, algo assim.
João Scortecci