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AS “PICAS” DE IRENE ALVES CABRAL

A cidade de Fortaleza começou a ser “iluminada” com gás hidrogenado da “Ceará Gas Company”, no ano de 1867. Forneceu “iluminação” para o comércio e as ruas da cidade, por meio de contrato de concessão, até o ano de 1958. Luz elétrica somente em 1934, com a chegada na capital da companhia inglesa “Ceará Tramway Light and Power”, que, a partir de 1914, passou a explorar o serviço de bondes e iluminação residencial. Com o golpe de 1930 - por imposição do governo de Getúlio Vargas - todos os contratos dos serviços públicos foram revisados, ajustados e muitos, cancelados. A iluminação a gás - baseada em tubos e combustores - tinha alto custo de manutenção e de tecnologia considerada ultrapassada. Valendo-se disso e, em nome dos novos tempos, a companhia inglesa “Ceará Tramway Light and Power” ficou com o negócio. Meu avô paterno João Batista de Paula (O Batista da Light) estava lá, participou das negociações e comandou a implantação dos serviços de eletricidade da cidade. Tempos de muito trabalho! Batista - era como gostava de ser chamado - começou na “Ceará Light” no ano de 1914, no serviço de Almoxarife. Dizia sempre: “Na verdade sempre fui um bom varredor de chão.” Risos. Foi “caixa” durante seis anos. Depois chefe do tráfego, chefe do escritório, assistente de gerente e, finalmente, em 26 de setembro de 1934, gerente. Foi gerente-superintendente durante vinte anos. Depois da Segunda Guerra Mundial, a empresa enfrentou dificuldades operacionais e teve que ser estatizada. No dia 1° de junho de 1946, por solicitação do próprio Batista, foi decretada, pelo governo Federal, a intervenção na "Ceará Light", sendo nomeado interventor, o capitão Josias Ferreira Gomes. Virou “Serviluz”, depois “Conefor”. Em 1971, se juntou a outras três companhias do estado, originando, então, a “Coelce”. Irene Alves Cabral, A “Gaguinha”, era dona de um exótico e divertido “puteiro” - colado na linha do trem - da Fortaleza dos anos 1940. Casa frequentada por políticos, ricaços, poetas e artistas da noite. Organizava - uma vez por mês - festas “extravagantes” e oferecia moças belíssimas, bebida à vontade e música ao vivo, com o que tinha de melhor na época. “Batista, não dá para fazer festa de danação no escuro”. Reclamava, sempre. “Precisa de luz, muita luz!” Insistia. Irene sofria de gagueira crônica. Quando ficava nervosa, gaguejava muito. Batista adorava provocá-la com piadas sujas e perguntas difíceis. Vê-la nervosa, com a gagueira “acelerada” era sua diversão maior. Batista era um provocador! Um safado, segundo seus melhores amigos. “Gaguinha” era gente boa - vestia-se com classe - e vez por outra, visitava meus avós Sarah do Carmo e João Batista, na Vila Santa Teresinha, da Família Paula. Juntos bebiam, devoravam suspiros, comiam marmelada Colombo, chupavam laranjas-lima, seriguelas do pé, figos, romãs e graviolas maduras. Mesa de merendas! “Batista deixa de maldade com a dama do amor”. Era vovó Sarah protestando contra as “aporrinhações” do Batista com a coitada da Irene. “Não vê que ela está aflita!”. Batista era terrivelmente impiedoso. Perguntava sobre “fetiches” de seus clientes, sobre amores secretos da noite e particularidades da vida de puta. “E a luz elétrica para a festa?" Insistia. Não desistia, nunca. Devido ao racionamento - tempos de guerra - a cidade ficava às escuras - pontualmente - às oito da noite. Virava um breu. Exceções somente com autorização do governador ou do gerente-superintendente, o Batista da Light. Mesmo assim até às 11 da noite, no máximo. “Gaguinha, presta bem atenção, eu vou lhe fazer uma pergunta difícil, de fazer contas de cabeça. Combinado?”. “Manda!”. “Se você responder - dizer a verdade - eu autorizo luz elétrica para a sua festa.” “Combinado?”. “Manda, já disse.”. “Gaguinha, se você colocar - uma depois da outra, na sequência - todas as picas que já levou na vida de puta, sob os trilhos da linha do trem, você acha que chegar até a cidade de Baturité?”. “95 quilômetros, né?” “Isso”. “Duro ou mole?”. Indagou, coçando a cabeça e mostrando a língua. “Duro, claro.”. “Usando os dois trilhos da linha do trem?”. Vovó Sarah - assustada - arregalou os olhos. “Sim”. Trem não anda em um trilho só. Gaguinha - mais pensativa ainda - voltou a perguntar, mais uma vez: “Ida e volta?”. “Sim. Ida e volta." Vovô Batista delirava de satisfação! Gaguinha sorriu, fez cara de poderosa, bebeu do café preto num gole grande, olhou com safadeza para a avó Sarah, que não perdia nada, e disse: “É possível!”. “Baturité não é tão longe assim, né!” Concluiu. Vovó Sarah resfolegou: “Santo Deus, Irene. É muita pica!” Irene Alves Cabral ganhou - merecidamente - iluminação extra para a sua festa. Irene também era cantora e - quando cantava - não gaguejava nunca. É o que dizem. Guardava os "cobres" da danação da noite no sutiã, sabia o nome e as preferências de cada um dos seus clientes e arrastava um “louco” amor de puta pelo “Zé Bananinha”, anão “lanterninha” do Cine Jangada, do centro da cidade e, também, pipoqueiro das madrugadas, que fazia ponto na porta do cabaré. No melhor da noite, mastigava pipoca doce, levantava a saia de algodão na brisa da noite e fazia amor, no tamborete, com Zé Bananinha. Outros tempos!  

João Scortecci