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“ÓSTRACOS” DE TELHAS DE BARRO E BALADEIRAS NO RIO PAJEÚ

Quebrar telhas! Quando criança – isso no Ceará dos anos 1967 e 1968 – quebrávamos telhas de barro e fazíamos “óstracos” para caçar calangos, tijubinas, ratos do mato, sabiás e rolinhas do papo gordo, no vale do Rio Pajeú. Lembro-me de que neles desenhávamos com giz, números da sorte, estrelas com cinco pontas, letras com as iniciais do nome ou apelido e, nos pedaços maiores, versinhos de amor, segredados da alma. Nossas inquietudes, dores e pecados. Fazíamos pedidos, encomendávamos prendas de amor, roubávamos das águas do rio, velas e ventos, de um tempo qualquer e distante. Tempestades? Talvez. Depois — predadores que éramos — guardávamos o pente de tiros, na cartucheira dos feitos.  Os nossos “óstracos” eram munição para as baladeiras — os estilingues — feitas de forquilhas de goiabeira, câmaras de pneu, cortadas na grossura de um dedo, amarradas e presas, num pequeno retângulo de couro cru, que abraçava os projéteis de morte. Uma telha de cinco pontas, era a bala de prata — mortal —, que zunia no vento do Pajeú e explodia no alvo. Eu era bom de pontaria! A caça do dia era guardada num bornal de pano, laçado junto ao corpo. No final da tarde, antes do banho das seis da tarde, contávamos — numa roda de feitos — o melhor da caçada, o troféu ceifado de sangue e glória. Na Grécia Antiga, em Atenas, os óstracos eram usados como cédulas de votação para determinar se uma pessoa deveria ser punida com o ostracismo, o desterro social e político. As “Cartas de Laquis” que compreendem 21 óstracos, encontradas no sítio de Tel Duveir, na Palestina, entre 1932 e 1938, são peças que datam do fim do período de ocupação judaíta, em Laquis — cidade do Antigo Oriente Próximo, agora um sítio arqueológico e um parque nacional israelense — antes de sua destruição, em 586 a.C., pelas mãos de Nabucodonosor II, o Grande, rei do Império Neobabilônico. Os “Óstracos de Samaria”, conjunto de 64 fragmentos de cerâmica, com inscrições em caracteres hebreus, encontrados na sala do tesouro do palácio de Acabe, em Samaria — região montanhosa do Oriente Médio, constituída pelo antigo reino de Israel, entre os territórios da Cisjordânia e de Israel — registram carregamentos de óleo e vinho levados de vários lugares vizinhos, para Samaria. Na época da escrita dos óstracos, os israelitas associavam a adoração de Jeová com a do deus cananeu, Baal. Alguns nomes de pessoas encontrados nos óstracos de Samaria significam “Baal é meu pai”, “Baal canta”, “Baal é forte”, “Baal se lembra”. E eu me lembro, ainda, de — no tempo em que enterrávamos tesouros no quintal de casa — ter guardado na lancheira do Zorro, um caco de telha no formato da cabeça de um leão. Nesse pote do tesouro, além do óstraco cabeça de leão, um punhado de outras prendas: engodo de barbante, um anzol de pescar mussum preto, botão de osso, figurinhas de times de futebol, peão de pau, cocão de aço e carretel de linha 24 — com cerol — para lancear arraia no vale do Rio Pajeú. Não me recordo de tê-la - um dia - desenterrado do chão. Nem mesmo da sorte do Zorro ter devolvido a minha lancheira - são e salva - do pão com ovo, de toda a minha infância. Deve ter ficado lá, em algum lugar, do reino de Leão.

João Scortecci