História antiga. Tinha até esquecido dela. Acontece. Depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, e do fim da União Soviética, em 1991, as histórias de uma guerra nuclear, saíram de moda e da boca da noite. No início do ano de 1978, conheci uma turma – cinco ou seis, na maioria, estudantes – que frequentavam uma casa de esfirras, na Av. Lins de Vasconcelos, no Cambuci. No grupo, um seminarista, de nome Benedito. No dia a dia, era carinhosamente chamado de “Padre Benê”. Eu – mais amigo e próximo – chamava-o de “Irmão Sino, o Louvado”. Era da cidade de Penápolis, interior de São Paulo, filho de mãe religiosa – paroquiana fervorosa – e de pai desconhecido. Na infância, havia sido coroinha e sineiro da igreja matriz. Um badalador! Benê não gostava muito do apelido, mas aceitava a brincadeira, pacientemente. Era magro, alto e comilão. Devorava – sozinho - uma dúzia e meia de esfirras, de queijo. Morava e estudava no bairro de Santa Cecília e, vez por outra, voltava comigo, de carona. Nunca o vi “azarar” uma garota. A Sandrinha, caçula do grupo, tanajura de olhos verdes, até que tentou amassá-lo, mas não rolou. Certa noite - de lua cheia – o papo, assim, do nada, versou sobre alienígenas, vampiros do espaço, guerra nuclear, destruição do planeta, profecias e apocalipse. “Vocês viram a história do disco-voador que apareceu em São Carlos?”. “Dizem que abduziu uma mulher e o seu filho!” “Devolveram?” "Não." “Isso, deve ter sido coisa dos russos.” "Não confio neles!". Irmão Sino, o Louvado, apenas escutava, assustadíssimo. Cutuquei-o, e ele deu um pulo da cadeira. “O que foi?”. “Nada. Respondi. Deve ter sido um ET!”, brinquei. E continuei – noite toda - provocando-o: “Irmão Sino, me diga, não pode mentir!”. Reagiu imediatamente: "Eu não minto!". “E se – agora – nesse exato momento, estourasse uma guerra atômica, o que você faria?” O grupo inteiro calou-se. Padre Benê, conferiu o grupo, mastigou a última esfirra da noite, e profetizou: “Eu tocaria o sino da igreja matriz de Penápolis!”. Silêncio. Hora de ir embora, pensei. Irmão Sino, o Louvado, levantou-se – parecia em paz – e tomou a direção do estacionamento. A maioria do grupo o seguiu: pensativos e mudos. Meses depois, o grupo se desfez, a casa da Av. Lins de Vasconcelos fechou, e a moda de comer esfirras, na madrugada, passou. Hoje acordei escutando – no radinho de pilhas – notícias sobre a guerra da Ucrânia e a ameaça de uma guerra atômica. E - pasmem – junto, sinos tocando, anunciando, talvez, o fim do mundo. Será? Nunca mais tive notícias do Irmão Sino, o Louvado. Gostava dele. Deve ter voltado para a sua cidade ou, então, sido abduzido pelos russos ou, ainda, alienígenas. Contei as badaladas. Mais de vinte! Estranho. Muito estranho. Mais do que o habitual, o de sempre. Desconfio que o espírito do Irmão Sino, o Louvado, veio nos dizer algo. Anunciação? Sinto fome de esfirras, de queijo. Farei isso. Depois, o sono dos justos, mortal, e acordar, inteiro, já “mortinho da silva”.