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JUNCO, BORGES E A BIBLIOTECA DE BABEL


Lendo o livro “O infinito em um Junco – a invenção dos livros no mundo antigo”, de Irene Vallejo (Intrínseca, 2022): Borges (Jorge Luis Borges, 1899 – 1986) também se encantou com a ideia de abraçar a totalidade dos livros no conto “A Biblioteca de Babel”, o labirinto completo de todos os sonhos e palavras. Lugar inquietante! Vemos ali as nossas fantasias se tingindo de pesadelo, transformadas em oráculo dos medos contemporâneos. O universo que alguns chamam de “a biblioteca”. Uma espécie de colmeia monstruosa que existe desde sempre e se compõe de intermináveis galerias hexagonais idênticas que se comunicam por escadas em espiral. Em cada hexágono encontramos luminárias, prateleiras e livros. E dois cubículos – à direita e à esquerda do patamar. Um deles serve para dormir em pé, e o outro é um mictório. A isso se reduzem todas as necessidades: luz, leitura e latrinas. Estou lendo três ou quatro páginas por dia. A cada “enxadada” uma minhoca, que me obriga a parar, reler, consultar a bibliografia da obra, abrir o Google, consultar outros livros e me perder – leve e solto – na fascinante história do livro. Castigo bom. Vallejo, olha o que você – no encantamento – fez comigo! Na lista das tentações, “Manifiesto por la lectura”. Uma ode à leitura e aos labirintos de Borges.

POEMA DOS DONS

Ninguém rebaixe a lágrima ou censura

Esta declaração da maestria

De Deus, que com magnífica ironia

Me deu mil livros e uma noite escura.


Desta terra de livros fez senhores

A olhos sem luz, que apenas se concedem

Sonhar com bibliotecas e com cores

De insensatos parágrafos que cedem


As manhãs ao seu fim. Em vão o dia

Lhes oferta seus livros infinitos,

Árduos como esses árduos manuscritos

Que pereceram em Alexandria.


De fome e sede (narra a história grega)

Morre um rei entre fontes e jardins;

Eu erro sem cessar pelos confins

Dessa alta e funda biblioteca cega.


Enciclopédias, atlas, o Oriente

E o Ocidente, eras, dinastias,

Símbolos, cosmos e cosmogonias

Brindam os muros, mas inutilmente.


Lento nas sombras, a penumbra e o nada

Exploro com o báculo indeciso,

Eu, que me figurava o Paraíso

Como uma biblioteca refinada.


Algo, que nomear ninguém se atreva

Com a palavra acaso, arma os eventos;

Outro já recebeu noutros cinzentos

Ocasos os mil livros e esta treva.


Ao errar pelas lentas galerias

Chego a sentir com vago horror sagrado

Que sou o outro, o morto, tendo dado

Os mesmos passos pelos mesmos dias.


Qual de nós dois escreve este poema

De um eu plural e de uma mesma mente?

Que importa o verbo que me faz presente

Se é uno e indivisível o dilema?


Groussac ou Borges, olho este querido

Mundo que se deforma e que se apaga

Em uma pálida poeira vaga

Que se parece ao sonho e ao olvido.

Jorge Luis Borges.