Aprendi desde muito cedo a espiar. A olhar – curioso que sou – pelos buracos desalinhados do corpo físico e espiritual. Aprendi a observar o diverso, o diferente e o variado das coisas do pensamento. Descobri, ainda, na diversidade pelo oposto, o caminho – impreciso – do conhecimento. Das ideias do mundo sem-fim. Lembro-me do meu primeiro dicionário escolar. Um tesouro guardado e perdido em algum lugar do tempo. De tanto espiá-lo – gastá-lo com os olhos de selva –, no verso e no inverso das palavras, encontrei-me em saber sobre isso, aquilo e tantas outras coisas impróprias. Em “bio” – elemento que tem o sentido de “vida” –, a biografia das coisas perenes. Na biodiversidade, o número incerto das espécies. Contá-las? Talvez. Nas espécies – diversas e mutantes –, as descobertas da sabedoria da natureza humana. Cruel e desumana. Em “biblio” – elemento relativo a livro –, a bibliografia das histórias versadas e escritas. Na bibliodiversidade – biblioteca das almas – a razão aplicada ao mundo do livro, onde as mutações – provavelmente infinitas – são títulos e subtítulos no mural da estante. Há quem diga que, para cada título da “Biblioteca de Babel” , existe uma história por segredar, um poema na garrafa navegando no inquieto mar, um bilhete açoitando o vazio, letras de um poeta riscando o céu com palavras, um verbo qualquer, impróprio, ainda por resfolegar conjugações, no denso e leve destino do universo. Tudo junto e necessariamente cru. Amordaçado! Preocupo-me – além da conta – com a concentração das linhas mal traçadas, das capas empilhadas no chão de fábrica, com as lombadas desiguais nas ruas da noite escura e suja – inocentemente, talvez – entregues ao desequilíbrio abrasador da poeira. Aprendi desde muito cedo a espiar. A olhar e a olhar, olhando. A observar o diverso, o diferente e o variado. Nas livrarias das espécies falta quase tudo da biblioteca das almas. Sombras agigantadas? Corpos transeuntes. Observo e não vejo o princípio e nem o fim das escadarias da flor. Falta – e me falta – o simetricamente oposto do inverso do verso. Quase poesia! Preciso escrever sobre bibliodiversidade, para falar – aos indivíduos e aos pares – sobre as ideias do mundo sem-fim. Ajoelho-me – com os meus pecados e os meus ossos de dor – que estou deveras tentando. Vergo-me. Desalinhado das fraquezas e dos sonhos. Das águas turvas do ninho e das raízes da terra alheia. Eu espio e me espio. Mortal, em Babel. Imortal em Borges (Jorge Luis Borges, 1899 – 1986) e suas almas.
João Scortecci