Pai, boa noite. Estou aflito. Falta-me o abraço da paz. Escrevo aqui, absorto de solidão, tristeza e muito sofrimento. Escrevo-lhe órfão. No peito: tudo dói, profundamente. Meu vazio - de corpo e alma - parece não ter fim. Sou náufrago de mar revolto. Céu escuro e cego. Sou agora terra infértil e devastada. Estou incerto e perdido de tudo. Falta-me o ar do sol. Rezo - silencioso - o terço das manhãs. Lembra? Leio o teu rosto. Alegre, amoroso, inesquecível. Escuto risos e histórias. Você? Talvez. Juntos somos filhos do Ceará. Fomos caçadores do mato, lobinhos de matilha, escoteiros do sempre alerta, torcedores de futebol, soldados da tropa, guerreiros, adultos e - mais do que tudo: pais e filhos. Você "miolo de lápis" e "tubarão preto". Eu, admirador! Temos o mesmo toque: medo de ficar sem água. Isso, talvez, explique, procurarmos, sempre, as nascentes do destino. Histórias que se cruzaram. Heranças de sangue e cumplicidade. Pai, você partiu. Logo, antes do fim da tarde, terei que vê-lo - morto - no caixão. Confesso: isso me apavora. Outro dia - no pior da demência - fomos lúcidos, conversamos, papo cabeça, lembra? E depois, então, despedimo-nos, deste mundo. Aquele dia foi incrível. Quanto amor! Um filme inteiro - veloz - passou pela minha cabeça. 51 anos, juntos. Não chorei, ainda. Aguardo-me. A tua foto - junto de mamãe -, aquela do porta-retratos -, será, então, o caminho possível. O nosso portal. Aguardo, então: não sei quando - o momento inesperado do choro. Ele virá. Não o choro das lágrimas miúdas da noite, das datas dos dias de festas, das horas difíceis e incuráveis. Não. Aguardo pelo choro feroz, profundo, intenso, aberto, de soluços e aceitação. Ele - o choro raiz - é o único capaz de curar a alma da dor cruel do passamento. Dizem que depois de um longo tempo, o coração, do nada, encontra, finalmente, o gozo da saudade. Espero. Hoje estou a cuidar do hospital, da documentação, do túmulo, do velório, das flores, do sepultamento e dos abraços. Assim será. Pai, tua falta não amanhece nunca. Pai, boa noite.
O DIA DO CHORO GRANDE
Meu saudoso Pai Luiz Gonzaga dizia sempre: Simplifique o trabalho do outro! É o que tento fazer, sempre. O velho Gonzaga - o Tubarão Preto - era apaixonado por fotografia, filmes 8 e Super 8. Antes de morrer, no ano de 2007, presenteou-me com sua coleção de filmes e um projetor. Disse-me: “João, você precisa comprar uma lâmpada nova para o projetor.”. Não esqueça! O aviso, na época, pareceu-me “irrelevante”. Anotei na cabeça. Depois de dois ou três anos de sua morte - num dia de saudade incontrolável -, isso depois de assistir ao filme “Peixe grande”, uma fábula de amor entre Pai e Filho, do diretor Tim Burton, e de choro grande, resolvi, finalmente, comprar pela Internet, uma lâmpada nova para o projeto e assistir os primeiros filmes da coleção, datados a partir do ano de 1967. A lâmpada do projetor, chegou, pelo correio, numa quinta-feira. Programei, então, uma seção especial, para a manhã do domingo. Na hora de colocar o carretel do filme - número 1 - no projetor, pintou uma tremenda dúvida. Como é mesmo que eu faço Isso? Abri a tampa do projetor e lá encontrei um bilhete - dobrado em 4 -, explicando tudo, quase um manual. A letra do canhoto Gonzaga era um primor. No verso da tampa do projetor - colado - encontrei, também, um desenho explicativo. Didático. Naquele domingo do ano de 2010 - depois do choro grande - descobri que estava, finalmente, curado. Havia vivido o luto. Simplifique o trabalho do outro! E o dia, finalmente, amanheceu.
19.02.2023 - 03.12.2007.