Na Avenida D. Manoel, centro da cidade de Fortaleza/CE, isso nos anos 1960, moravam um engenheiro e um dentista, ambos com o mesmo nome: Luiz Gonzaga. O engenheiro era meu pai, e o dentista – até então desconhecido por mim – tinha consultório dois quarteirão depois, quase no final da avenida. Não existia, ainda, a Avenida Aguanambi – aberta nos anos 1970 –, e a D. Manoel terminava ali perto, na Rua Padre Valdevino, no sossego de um imenso pé de eucaliptos. Papai Luiz trabalhava no Grupo J. Macedo, e o dentista da família era o Dr. Maurício, da Fundação J. Macedo. Foi na sua cadeira torturante, em 1966, depois do jogo de futebol cujo resultado foi Brasil 1 x Portugal 3, na Copa do Mundo da Inglaterra, que ganhei um buraco na língua. Tudo culpa do gol do português Eusébio! Papai Luiz tinha um escritório no centro da cidade, no Edifício Palácio do Progresso, onde atendia pequenos serviços de engenharia. Vez por outra, recebia clientes no terraço de casa. Fui eu quem abri o portão para uma senhora de meia-idade, querendo falar com o doutor. Convidei-a para entrar. Sentamo-nos no terraço e lá esperamos até que o doutor finalmente chegasse. “O que temos de tão urgente?”, perguntou em voz alta. Era seu aviso de "cheguei". Adorava observá-lo, vê-lo conversar com as pessoas e o jeito mágico e alegre com que quebrava o gelo e se posicionava profissionalmente. Lições de uma vida inteira. Tento imitá-lo, sempre. Fiquei por lá. “Doutor, quero fazer uma ponte. Quanto custa?”. Papai Luiz, surpreso, ajeitou-se na cadeira, estalou os dedos e disse: “Depende!”. “Depende do quê?” Papai, então, pontuou necessidades: tamanho da ponte, largura, material a ser usado, tipo de estrutura e grau de dificuldade para executar a obra. Uma aula! A história – até hoje – faz-me lembrar de escritores – quase sempre iniciantes – que querem publicar um livro e, antes de tudo, perguntam: “Quanto custa?”. Respondo, sempre: “Depende!”. E explico: depende do formato do livro, do tipo de papel, número de páginas, cores e quantidade de exemplares. A senhora, não satisfeita, insistiu: “Doutor, o preço pode ser aproximado!". E a conversa foi longe, quase uma hora inteira. Papai detalhou – demoradamente – tipos de materiais usados na construção de uma ponte, estrutura – ferro, aço ou concreto – e itens de segurança. A conversa estava animada e interessante. Papai Luiz explicava, e a senhora insistia, querendo saber, a todo custo, o preço do serviço de uma ponte. “O senhor não quer ver o local da ponte?”, insistiu, mais uma vez. Silêncio. “Sim, quero!”, respondeu ele, rendendo-se de vez. A senhora sorriu levemente, tapou parte da boca com a mão e, com os dedos, esticou os lábios para o lado direito: “Aqui, no carrilhão do céu da boca!”. Papai Luiz não resistiu. Caiu na gargalhada. Logo se desculpou: “Perdão! Perdão!”. Pegou a senhora pela mão, abriu o portão de casa e lhe disse, apontando na direção do pé de eucalipto: “É lá! O doutor que a senhora procura não sou eu! Eu sou o doutor engenheiro”. Lembro-me de que – voluntariamente – levei-a até o consultório do doutor Luiz Gonzaga, o dentista. Parei no portão da casa e toquei a campainha. Escutei, de longe, o barulho do motorzinho do doutor, trabalhando, ferozmente. Alguém veio e abriu o portão da casa, de muro baixo e jardim com roseiras. A senhora entrou, e o cachorro da casa escapou, mordendo-me a canela esquerda. Alguém tinha dito: "Ele não morde!". Isso talvez explique o meu temor incondicional, até hoje, por dentistas, pontes – de todos os tipos – e cachorros que, desavisados, não gostam do meu cheiro de medo. Acontece.
João Scortecci
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