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PÃO FRESCO, CERVEJA E O COMEDOR DE SUJEIRA / JOÃO SCORTECCI

“O que você faz?” Perguntei por perguntar. Puxando conversa fiada, esperando a fila andar, de vez, na casa lotérica, véspera de prêmio da Mega-Sena, acumulada. Jogo por jogar: sei que quem vai ganhar é um sortudo de longe, de alguma cidade pequena, do cafundó do Judas. “Eu sou um devorador de pecados”. Foi o que escutei da boca do homem, de uns quarenta e poucos anos, magro, chapéu de palha, camisa suja, puída e óculos com lentes fundo de garrafa. Sujeito estranho. “Eu sou um comedor de sujeira, um pacificador de almas!” Apresentou-se. A fila havia travado no guichê, por causa de um jogo “marcado” errado ou algo assim. Deixei a pressa de lado e dei ouvidos ao servidor espiritual. “Eu faço serviço de limpeza espiritual. Uso pão fresco e cerveja, seguindo a tradição da Escócia. Meu trabalho é sugar da alma do morto todos os seus pecados, para que ele descanse em paz e encontre o caminho da Luz.”. E funciona? Perguntei. “Nunca houve reclamação!” Respondeu, com segurança. “A coisa funciona assim: a família paga o serviço e eu cuido do tudo.” E é caro o serviço? Quis saber. “Um salário mínimo e mais um extra, dependendo da quantidade de pecados do morto." Justificou. "Dou NF e facilito o pagamento no cartão de crédito, em até três vezes, sem juros.". “Você é um pecador?”. Perguntou-me, olhando - direto - no fundo dos meus olhos. Sou um capeta!. Respondi. Ele não riu. Continuou me olhando. A fila na lotérica andou – chegou a minha vez - e eu, então, fiz o jogo de sempre, de 7 dezenas. “Devorador de pecados” eram comuns na Inglaterra, Escócia e País de Gales, no século XVII e até início do século XX. O trabalho era simples: absorver - sugar - os pecados do morto e livrá-lo do inferno. O ritual era gastronômico e simples: Primeiro "comer pão e beber cerveja” depositados no peito do morto e, depois, durante o sepultamento, fazer um breve discurso, tomando para si os pecados do morto, com uma reza profana: “Eu dou servidão e descanso agora a ti, querido homem. E para a tua paz eu comprometo minha própria alma!”. Profetizava. Na mitologia asteca, a deusa Tlazolteotl – deusa da luxúria e dos amores ilícitos, senhora do sexo, da carnalidade e das transgressões morais – era considerada uma “purificadora” que perdoava e eliminava o pecado alheio. Ela tinha uma função “redentora” nas práticas religiosas da civilização da Mesoamérica, durante a evangelização dos espanhóis no Novo Mundo. No final da vida de um indivíduo, ela o autorizava a confessar seus pecados e, segundo a lenda, ela limpava sua alma, comendo a sua sujeira. Voltei-me, então, ao comedor de sujeira que me aguardava - pacientemente - na porta da lotérica. Você tem nome?. Perguntei. “Das Chagas.” Respondeu. Esticou a mão e entregando-me seu cartão de visitas, impresso em alto relevo. “Quando precisar de mim, ligue-me! Eu venho e como toda a sua sujeira!”. Guardei o cartão. Um salário mínimo? Bem pago, pensei. Aqui confesso: não deveria ter dito que era um capeta! A brincadeira vai sair caro, muito caro. Na volta da lotérica, passei na padaria e comprei pão fresco e duas latinhas de cerveja, na onda do servidor espiritual e do santo ofício do pecado e das tratativas da alma.     

João Scortecci