Doido! Doido mesmo. E o que ele faz aqui? Perguntei. Silêncio. Decidi, então, chegar junto, olho no olho, criar laços, puxar um papo raiz. Perguntei-lhe: Quem é você? Funciona sempre. Nada de sorriso, falar do tempo ruim, de política, futebol, religião e muito menos sobre a desgraça da hora. Não funciona! Os doidos odeiam isso. Recomendo, sempre, abordagem direta, sem dor, na altura do fígado. Perguntei e junto, quase que de imediato, pontuei: “Não sou usual, não me enquadro nos padrões dos imbecis, sou imperativo, tenho manias, muitas, e adoro cometer poesia!”. O doido, muito doido, magro e alto, quarenta e poucos anos, óculos de grau, fungou um catarro, cuspiu curto e, então, cantarolou: “Eu também, eu também!”. Silêncio. Ficamos ali, frágeis, pensativos, no mesmo laço da sorte, esperando o morto do Chico Salame, ser cremado no crematório da Vila Alpina. O caixão baixou – fim das mesmas músicas de sempre - e o povo, então, foi embora, ligeirinho. “Eu adoro funerais!” Disse-me. “Eu também”, respondi. Perguntou-me, então: “você conhecia o gordinho?”. “Acho que sim!” “Era comedor de esfirras de queijo, torcedor do time da Lusa e poeta!”. Expliquei. O doido, doido mesmo, sentenciou: “As pessoas normais são estranhas, mentem, choram por nada e adoram tagarelar da vida alheia.” Chico Salame era um gordo feliz. Dirigia taxi e jurava que estava fazendo dieta. Morreu no volante do carro. Dizem – não sei se é verdade – que deu trabalho para tirá-lo do carro. Chico Salame foi o único gordo, que conheci, que tinha o pinto grande. Isso explica o apelido. Sua alegria: mostrá-lo! O doido, doido mesmo, então, retribuiu-me a pergunta do aporte: “Quem é você?”. Não sou doido, disse-lhe. “Eu sou louco, muito louco, exagerado e poeta!”. Ele sorriu. “Queria ser como você!” Confessou-me. “Louco?”. Quis saber. "Não. Eu queria ser poeta, fazer versinhos de amor, trovas, quadrinhas, sonetos, versos livres e amar, amar muito!". Lembre-me, então, da letra da música “Vaca Profana”, do Caetano Veloso: “Mas eu também sei ser careta / De perto, ninguém é normal / Às vezes, segue em linha reta / A vida que é meu bem, meu mal.” Perguntei-lhe, então, tentando ser careta: “O que você está fazendo aqui?”. O doido, doido mesmo, disse-me, surpreso: “Esperando você!”. Silêncio. Cuspi longe, despedi-me, então, com abraço forte na Tereza, ex-mulher do Chico Salame e fui embora, veloz, em linha reta, cantarolando versos da Vaca Profana. Antes, desavisado de tudo, digitei no celular do doido, doido mesmo, o número do meu celular. No início do ano ele, o doido, doido mesmo, me trouxe o seu livro de poesias para publicar. "Oi louco!", gritou. "Oi doido!", resmunguei. Nos abraçamos, forte. A vida que é bem, meu mal, ainda, pediu-se, um agrado literário: "Scortecci, você escreve o prefácio do meu livro?" Foi o que fiz. Doideira! Eu também - as vezes - sei ser careta. De perto, ninguém é normal, na altura do fígado.
João Scortecci
- Início
- Biografia
- Livros
- Críticas Literárias
- Consultoria
- Cursos e Palestras
- scortecci@gmail.com