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O DIA E A HORA DO MELEAGRIS GALLOPAVO

O Meleagris gallopavo chegava lá em casa, vivo, para engorda, 45 dias antes da Noite de Natal. Isso no Ceará dos anos 1960. Papai Luiz dizia, sempre: João, não estressa o peru! E mais: nada de amizade com ele!”. Por quê? Quis saber: Depois você não consegue matá-lo! Simples assim. O meu primeiro peru abatido aconteceu quando eu tinha 12 anos de idade. Já tinha - tentado - com um porquinho, um ano antes, mas o serviço ficou pela metade. Fracassei. Na hora do machado na cabeça, fechei os olhos e errei a pontaria. O porquinho gritou e veio pra cima de mim. Corri dele e me escondi no pé da goiabeira. Ele ficou gritando e pulando. Foi o Braz, empregado da casa do meu tio Zanzão, que terminou o serviço. Alguém perguntou: "Você bebeu pinga antes?" Não. Respondi. Então foi isso! Tragédia. Desde então bebemos juntos. Durante o período da engorda, tudo que sobrava de comida, ia para a dieta do Gallopavo. No dia do abate - gordinho que só ele - bebíamos pinga, da boa. Nós e o peru. Diziam, na época, que era para amaciar a carne do bicho e limpar a sua alma do olho gordo. Mentira! Era para ficarmos tontos, bêbados e corajosos. Pegávamos o Meleagris gallopavo pelos pés, puxávamos sua cabeça com força, até estalar o pescoço, e o sangrávamos numa bacia de aço. A cena, para muitos, pode parecer cruel, violenta, mas comum, significativa, em muitos lugares mundo afora. Mamãe Nilce depenava e assava o Gallopavo e nós, filhos, o desfiávamos, separando em travessas, as carnes brancas das pretas. Trabalhoso! O gallopavo era, então, servido na Noite de Natal com abacaxi, pêssego e farofa. Ficou a tradição. Um detalhe insignificante: gosto das carnes pretas e só faço o serviço completo depois de molhar o bico e espantar os espíritos ruins. Tradição é tradição.  

João Scortecci