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A POESIA NÃO DORME

Poesia não dorme. Adormece! Há quem diga que ela tira pestanas e finge - vez por outra - de morta, no sono do instante que lhe cabe. Coisas da hora. Razões do espírito inquieto e frágil. Poesia arteira que brinca com as ausências e os instantes: de vida e morte! Relendo fotos do meu antigo rosto - no álbum da criança de ontem - demoro-me, assustado, com as recordações do ventre, com as danações temporais e com as cores púrpuras da alma. Sou eu! Digo e grito: Sou eu, ainda! A poesia não dorme, adormece! Tira pestanas e finge solitude. Nelas impressões de traços, versos e marcas, rabiscos de pele, de secura e dor. Vez por outra, ainda, sangra. Rala e dói. Não me demoro muito olhando o envelhecido perfil: tardei-me de mim. Adiante sou feliz. Solitude e travessias. E mar, de infinitos mundos. Poesia é isso e mais: do amanhã. Quando criança, a felicidade era ser uma caçamba de caminhão FNM! Um colecionador de coisas, e coisas. Um navegante: de corpo alçado aos céus da sorte! Continuo, ainda, guardando os meus ventos, minhas águas, cheiros, colheitas, manhãs de sol, imensidão e amores. Continuo. Com os quase 70 anos, a caçamba do FNM anda pesada, repleta de inúteis, de perdidos! O menino, então, se vê obrigado a desfazer-se das tralhas, dos medos, dos cacarecos, das mágoas e dos impróprios. Tenho feito. De tudo, aos poucos. Lentamente. E assim, desfaço-me, leve. Guardando, ainda, os voláteis do coração selvagem e jovem. Desacordar! Não durmo, mas adormeço. Sou eu, ainda, relendo-me, inquieto e frágil. Pergunto-me: Razões do espírito? Sim. Coisas da hora, pássaros do céu, envelhecidos. Tardei-me.

João Scortecci