Ritinha, irmã caçula de Lúcio, gostava de jogar bola com os meninos da rua. Isso no Ceará dos anos 1960. Lembro que cortou os cabelos curtos, a La Rita Pavone, cantora italiana de sucesso na época. Magrela e sapeca. Veloz. Chutava a bola Pelé com precisão e força. Começou na torcida, trepada no muro do vizinho. Depois na defesa, completando número, no meio rebatendo a bola e por fim, na frente, fazendo gol. A mãe de Ritinha não gostava da história. No início proibiu: Futebol não é esporte para mulher! Algo assim. Depois, com o tempo, conformada, liberou geral. Virou fã de carteirinha e não perdia um jogo. Jogávamos descalços. As vezes até no meio dos carros. Um time com camisa – o da Ritinha Pavone, sempre - e o outro, sem camisa. Ritinha Pavone colecionava marcas nas canelas e as mostrava com gosto. Cada cicatriz tinha uma história. Quando perdia o tampão do pé - chutando o chão - enrolava as carnes frescas com esparadrapo. Lendo sobre a história do futebol feminino no Brasil descobri que no período entre 1941 a 1979 era proibido. Desconfiava. A estupidez coube a Getúlio Vargas (decreto-lei 3.199/41), durante a Ditadura do Estado Novo. A ditadura acabou e a proibição ficou, no silêncio do tempo. Esqueceram de revogar? Talvez. No decreto 3199/41, a estúpida justificativa: “Esporte incompatíveis com as condições de sua natureza.” E mais, no texto: halterofilismo, beisebol e as lutas! Aqui comigo mesmo: tudo que hoje faz muito sucesso! No discurso oficial a justificativa de que esses esportes poderiam afetar as funções orgânicas, o equilíbrio psicológico das mulheres e até prejudicar a capacidade delas de serem mães. Somente em 1983, depois de muita pressão, que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) aprovou uma norma que permitiu a prática do futebol feminino nos estados, municípios e territórios. Pesquisando descobri o livro “Futebol Feminino no Brasil” da historiadora Aira Bonfim. Vou comprá-lo. Encontrei na Internet, também, farto material. Fotos, depoimentos e até um filme. Quando deixei o Ceará, no ano de 1972, Ritinha ainda jogava bola e sonhava fazer carreira profissional. Fiquei 10 anos longe da minha terra natal – exílio voluntário. Quando voltei no ano de 1982, já editor de livros, ela havia mudado de endereço e sumido de vez. Olhando as fotos na Internet – até tendei – encontrar o seu rosto, sem sucesso. Parei de procurar quando, então, vi que as mulheres da época, até 1960, jogavam de saias compridas, até as canelas. Nada parecido com o estilo livre, veloz e mágico de Ritinha. Um detalhe, pertinente: Ritinha chutava com os dois pés, matava no peito, dava carrinho, cotovelada e cuspia na cara dos adversários, vez ou outra. Acordei na poltrona da sala sonhando com o futebol de Pavone. Ritinha brilhava: dava voadora na bandeirinha do escanteio, cavava penalti, pentelhava a vida ingrata do juiz e tirava a camisa para a torcida depois de gol de placa. Coisas do futebol.
João Scortecci